Folha de S. Paulo


Suspender a Rússia significa punir centenas de esportistas limpos

Cena 1: Em um laboratório, o cientista analisa as amostras de sangue e urina. Se encontrasse um resultado positivo, ligava para o vice-ministro de Esportes e dizia o nome do atleta flagrado. Do outro lado da linha, ele respondia com apenas uma palavra: salva ou quarentena. Se a ordem fosse para salvar, o cientista falsificava os exames.

Cena 2: Nos Jogos de Inverno, o FSB (antiga KGB, polícia russa) constrói um prédio ao lado ao laboratório antidoping. As duas construções são ligadas apenas por um pequeno buraco. Durante a madrugada, o cientista passava pelo furo as amostras de urina de atletas que o ministério informava que haviam usado doping. Os policiais, do outro lado, retiravam uma amostra de urina limpa de uma geladeira e a colocavam no lugar daquela que estava contaminada.

Em qualquer filme essas cenas soariam exageradas, inverossímeis até. Mas são reais. E o nível das tramoias criadas para acobertar o doping russo assusta.

O esquemafoi desmantelado graças a uma reportagem do "New York Times" sobre manipulações feitas pelo ex-diretor do laboratório antidoping dos Jogos de Inverno de Sochi-2014 que impulsionou uma investigação da Wada (Agência Mundial Antidoping). O trabalho feito pelo advogado canadense Richard McLaren mostra que foi criada uma metodologia para fazer casos positivos desaparecerem e transformou em negativos pelo menos 312 testes de 20 esportes. Tudo com apoio do governo.

Nos próximos dias, o Comitê Olímpico Internacional decidirá que medidas irá tomar. A sanção mais pesada seria banir a Rússia dos Jogos do Rio.

Nenhum atleta no país pisaria no Brasil.

O atletismo russo já está fora da Olimpíada, punido por um esquema de acobertamento de uso de doping.

Punições exemplares têm sido uma das bandeiras das autoridades que lutam contra o doping. Flagrar atletas e acompanhar o desenvolvimento das técnicas e substâncias dopantes tem sido cada vez mais difícil, então os casos descobertos são tratados com muito rigor. E cada vez mais há investimento em investigação, como as que levaram à descoberta dos dois esquemas russos.

A Rússia, principalmente diante do envolvimento de seu governo no caso, merece ser banida, perder todo o prestígio e todo o dinheiro que ganharia com o sucesso de seus atletas.

Mas suspender o país significa também punir dezenas, centenas de esportistas limpos e de profissionais que dedicaram anos para atingir o ápice de suas carreiras, pessoas que precisam e merecem estar nos Jogos.
A Olimpíada só acontece a cada quatro anos. Para muitos, a competição no Rio seria uma chance única de ganhar uma medalha ou simplesmente de participar.

O esporte já viveu casos célebres de decisões políticas que afetaram atletas. Nos Jogos de Moscou-1980, os EUA boicotaram o evento na então União Soviética. Quatro anos depois, os soviéticos deram o troco. Politicamente, fazia sentido para seus governos, enfraquecia o evento do "inimigo", mostrava força. Mas deixou também uma legião de atletas que viram seus sonhos frustrados.

E então, vale mesmo a pena punir inocentes?

Doping na Russia

Doping em Sochi


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