Folha de S. Paulo


Sartre rompeu com Camus ao defender a violência revolucionária da esquerda

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O escritor Albert Camus
O escritor Albert Camus

Eles formavam uma dupla estranha. Albert Camus [1913-1960] era francês nascido na Argélia, um "pied-noir" [pé preto] que nasceu pobre e, com suas feições bogartianas, seduzia a todos sem nenhum esforço. Jean-Paul Sartre [1905-1980], que fazia parte da elite francesa, jamais poderia ser tomado por um homem bonito.

Eles se conheceram em Paris durante a ocupação alemã, e sua amizade se intensificou após a Segunda Guerra Mundial. Naquela época, quando as luzes da cidade estavam sendo reacendidas aos poucos, Camus foi o amigo mais íntimo de Sartre. "Como o amávamos naquela época", Sartre escreveria mais tarde.

Eles foram ícones de sua era. Os jornais divulgavam seus movimentos diários: Sartre sempre no café Les Deux Magots, Camus era o peripatético de Paris. Enquanto a cidade começava a ser reconstruída, Sartre e Camus expressavam o estado de ânimo do momento.

A Europa fora imolada, mas as cinzas deixadas pela guerra criaram o espaço para se imaginar um novo mundo. Os leitores tinham a expectativa de que Sartre e Camus pensassem qual poderia ser a cara desse novo mundo. A também filósofa Simone de Beauvoir recordou: "A ideia era de que articularíamos a ideologia da era do pós-guerra".

Essa ideologia assumiu a forma do existencialismo. Sartre, Camus e seus companheiros intelectuais rejeitaram a religião, montaram peças de teatro novas e incômodas, desafiaram seus leitores a viver autenticamente e escreveram sobre o absurdo do mundo –um mundo sem propósito e sem valor.

"[Há] apenas pedras, carne, estrelas e as verdades que a mão pode tocar", escreveu Camus. Temos que optar por viver neste mundo e projetar sobre ele nosso propósito e valor, para nele criar sentido. O homem é livre e carrega o peso dessa liberdade, pois a liberdade vem acompanhada de uma responsabilidade terrível, até debilitante de viver e agir com autenticidade.

Se a ideia da liberdade aproximava Camus e Sartre filosoficamente, a luta pela justiça os unia politicamente. Eles estavam engajados no esforço de desafiar e superar a injustiça, e, para eles, nenhum grupo de pessoas recebia tratamento mais injusto que os trabalhadores –o proletariado. Camus e Sartre os enxergavam acorrentados ao seu trabalho e destituídos de humanidade. Para libertá-los era preciso erguer novos sistemas políticos.

Alberto Korda/Efe
Che Guevara ao lado dos filósofos franceses Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir
Che Guevara ao lado dos filósofos franceses Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir

Em outubro de 1951, Camus lançou "O Homem Revoltado", em que delineou uma "filosofia da rebelião". Não se tratava de um sistema filosófico propriamente dito, mas de um amálgama de ideias filosóficas e políticas: cada ser humano é livre, mas a liberdade propriamente dita é relativa; é preciso abraçar os limites, a moderação, o "risco calculado"; os absolutos são anti-humanos.

Acima de tudo, Camus condenou a violência revolucionária. A violência poderia ser usada sob circunstâncias extremas (ele apoiara o esforço francês na guerra, afinal), mas o uso da violência revolucionária para empurrar a história na direção que se deseja é utópico, absolutista e uma traição a si mesmo.

"A liberdade absoluta é o direito do mais forte de dominar", escreveu Camus, enquanto "a justiça absoluta é alcançada com a supressão de toda contradição; logo, ela destrói a liberdade". O conflito entre justiça e liberdade exige reequilíbrio constante, moderação política, a aceitação e a adesão àquilo que mais nos limita: nossa humanidade. "Viver e deixar viver para criar o que somos", disse Camus.

SEPARAÇÃO

Sartre leu "O Homem Revoltado" e o repudiou. Para ele, era possível, sim, alcançar a justiça e a liberdade perfeitas –esses termos descreviam as conquistas do comunismo. Sob o capitalismo e na pobreza, os trabalhadores não podiam ser livres. Suas opções eram inaceitáveis e inumanas: o trabalho impiedoso e alienante ou a morte.

Ao remover a figura dos opressores e devolver a autonomia aos trabalhadores, o comunismo permitiria a cada indivíduo viver sem carências materiais e, portanto, escolher a melhor maneira de se realizar. Isso tornaria o indivíduo livre e, graças a essa igualdade rígida, esse sistema seria justo.

O problema é que, para Sartre e muitos outros da esquerda, a violência revolucionária era necessária para se alcançar o comunismo, porque a ordem existente precisava ser destruída.

É claro que nem todos da esquerda endossavam essa violência. Essa divisão entre esquerdistas de linha dura e moderados –em termos amplos, entre comunistas e socialistas– não era novidade. Mas, nos anos 1930 e início dos anos 1940, a esquerda se unira temporariamente contra o fascismo. Com a destruição do fascismo, voltou à tona a ruptura entre esquerdistas de linha dura dispostos a tolerar a violência e moderados que a condenavam.

Essa divisão ganhou contornos ainda mais dramáticos com o desaparecimento concreto da direita e a ascendência da União Soviética –que empoderou os partidários da esquerda de linha dura em toda a Europa, mas levantou questionamentos inquietantes para os comunistas, à medida que vieram à luz os horrores dos gulags, do terror e dos processos de Moscou.

A pergunta que se impunha para cada esquerdista do pós-guerra era simples: de que lado você está?

Com a publicação de "O Homem Revoltado", Camus se declarou a favor de um socialismo pacífico que não recorreria à violência revolucionária. Ele ficava chocado com as histórias que emergiam da União Soviética: não era um país de comunistas que viviam unidos na liberdade, mas um país sem liberdade alguma.

Sartre, enquanto isso, continuava a lutar pelo comunismo e estava disposto a endossar a violência.

SÓ SE FALAVA NAQUILO

A ruptura entre os dois amigos causou sensação na mídia. A revista "Les Temps Modernes", editada por Sartre, que publicara uma resenha crítica de "O Homem Revoltado", viu a edição em questão se esgotar três vezes. O "Le Monde" e "L'Observateur" cobriram exaustivamente o racha entre os dois filósofos.

Seria difícil imaginar uma vendeta cultural recebendo o mesmo grau de atenção pública hoje, mas muitos leitores enxergavam as crises políticas de seu tempo refletidas na desavença entre Sartre e Camus. Era uma maneira de enxergar a política encenada no mundo das ideias e oferecia aos leitores uma medida do valor das ideias. Se você é totalmente engajado com uma ideia, é compelido a matar por ela? Qual é o preço da justiça? Qual é o preço da liberdade?

A posição de Sartre encerrava inúmeras contradições com as quais ele se debateu pelo resto de sua vida. Sartre, o existencialista, que dissera que os homens são condenados à liberdade, era também Sartre, o marxista, para quem a história não dá muito espaço para a liberdade real, no sentido existencial.

Embora nunca tenha se filiado ao Partido Comunista francês, Sartre continuou a defender o comunismo em toda a Europa até 1956, quando a chegada dos tanques soviéticos em Budapeste finalmente o convenceu de que a União Soviética não indicava o caminho a ser seguido (na realidade, ele ficou consternado com a invasão da Hungria pelos soviéticos, porque estariam agindo como os americanos).

Sartre continuaria a ser uma voz poderosa da esquerda pelo resto da vida e escolheu o presidente francês Charles de Gaulle como seu alvo especial. Após um ataque particularmente acerbo, pediram a De Gaulle que prendesse o filósofo. "Não se prende Voltaire", De Gaulle respondeu.

Mas Sartre continuou a ser imprevisível e, quando morreu, em 1980, estava engajado num flerte prolongado e bizarro com o maoísmo. Embora tivesse se afastado da União Soviética, ele nunca abriu mão por completo da ideia de que a violência revolucionária pode se justificar.

A violência do comunismo levou Camus a seguir trajetória diferente. Ele escreveu em "O Homem Revoltado": "Finalmente, escolhi a liberdade. Pois, mesmo que a justiça não se realize, a liberdade conserva o poder de protesto contra a injustiça e mantém a comunicação aberta."

Hoje, quando a Guerra Fria já ficou no passado, é difícil deixar de concordar com Camus e surpreender-se com o fervor da lealdade de Sartre ao comunismo.

A adesão de Camus à realidade política prudente, à humildade moral, aos limites e à humanidade falível, é uma mensagem muito ouvida até hoje. Mesmo as ideias mais veneráveis e dignas de respeito precisam ser contrapostas umas às outras. O absolutismo e o idealismo impossível que ele inspira representam um caminho perigoso –e a razão pela qual a Europa estava coberta de cinzas enquanto Camus e Sartre se debatiam para visualizar um mundo mais justo e mais livre.

Tradução de CLARA ALLAIN

SAM DRESSER é editor da revista digital "Aeon"

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