Folha de S. Paulo


'Não tem perdão', diz procuradora aposentada sobre suspeito de estupros

Adriano Vizoni/Folhapress - 26.set.2016
A candidata pelo PSD, Luiza Eluf, durante debate entre os candidatos a vereadores: Agnes Helena (Novo), Carol Protesto (PT), Eduardo Scolese (mediador Folha), Daniel Annenberg (PSDB), Luiza Eluf (PSD) e Pedro Markun (Rede).
Luiza Nagib Eluf, procuradora aposentada e ex-secretária nacional dos Direitos da Cidadania

Na semana em que o ajudante geral Diego Ferreira de Novais, 27, foi preso duas vezes por atacar mulheres dentro de ônibus em São Paulo, a discussão sobre a definição legal de estupro veio à tona.

Na quarta-feira (30), depois do primeiro ataque, o juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto determinou a libertação de Novais por entender que não houve uso de violência ou grave ameaça –ele se masturbou e ejaculou em uma mulher que estava sentada dentro do coletivo.

Após novo ataque a uma mulher em um ônibus no sábado (2), o juiz Rodrigo Marzola Colombini decidiu neste domingo (3) manter a prisão preventiva de Novais –que já se envolveu nos últimos anos em pelo menos 17 acusações de crimes sexuais.

Procuradora de Justiça aposentada e ex-secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (governo FHC), a advogada Luiza Nagib Eluf, 62, considera que a reforma legal que ampliou desde 2009 o rol de atos previstos no crime de estupro deixou a desejar.

No entanto, critica a soltura de Novais na semana passada e afirma que atos libidinosos sempre foram severamente punidos no Brasil.

"O juiz pode não gostar, mas a lei descreve perfeitamente a conduta", afirma. "Estamos falando de uma pessoa doente, que precisa ser tratada. Mas isso não significa que ele está perdoado pelo crime que cometeu. Num primeiro momento ele tem que ficar detido, porque foi preso em flagrante", diz.

Eluf considera a legislação brasileira avançada na proteção da mulher, mas avalia que a repressão estatal tem sido insuficiente na área. "Chegamos num ponto em que as mulheres não conseguem sair na rua para tomar um ônibus", afirma à Folha.

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A libertação do agressor
O juiz [José Eugenio do Amaral Souza Neto, que decidiu pela soltura do suspeito na semana passada] foi na onda do promotor e achou que não houve constrangimento nem violência. Mas toda a doutrina penal sobre a questão sexual é fundamentada no princípio de que quem não pode consentir, dissente.

Ou seja, se ninguém perguntou se a vítima queria que ejaculassem no pescoço dela e o agressor a atacou de surpresa, sem dar tempo para ela reagir, o que qualquer intérprete da lei está autorizado a supor? Que ela não queria.

O juiz e o promotor não conseguiram avaliar corretamente a gravidade da conduta. A penetração não é necessária para praticar ato violento, a própria lei diz isso.

A gravidade do ato
Vou te dar um exemplo muito usado, que é o da moça que está em coma no hospital e engravida. É estupro. Ela não era capaz de consentir com a relação sexual.

A moça do ônibus igualmente não consentiu: não foi perguntada de nada, só percebeu quando o ato estava consumado.

Não se pode considerar essa agressão pequena demais para configurar estupro. Ela é grande demais para configurar uma mera contravenção penal [cuja pena é de multa] e não é pequena para configurar estupro.

Infelizmente, acho que o artigo 213 [do Código Penal, que define estupro] descreve perfeitamente a conduta praticada pelo agressor do ônibus. O juiz pode não gostar, mas a lei tem que ser cumprida.

A moça entrou em estado de choque, que é algo fortíssimo. Se para ela o ato foi tão terrível a ponto de ela entrar em estado de choque, a magnitude da violência foi muito grande. E essa magnitude está prevista no Código Penal.

Ato libidinoso
Antes da lei 12.015/09, que reformou os crimes contra a dignidade sexual, havia no Código Penal a previsão do atentado violento ao pudor, que englobava qualquer ato de natureza sexual diverso da conjunção carnal. Mas a pena era exatamente a mesma.

Desde 1940 que o ato libidinoso era excessivamente abrangente –uma pessoa poderia pegar a pena de estupro por beijar alguém de forma lasciva, por exemplo.

A reforma penal de 2009 perdeu uma chance importante de adequar esses tipos penais, porque não adiantou nada juntar os artigos [de estupro e de atentado ao pudor] e manter a redação aberta.

Mas desde sempre que uma conduta sexual agressiva é severamente punida no Brasil. Não há inovação nenhuma. E só uma questão de nome. Os dois artigos tratavam de atos libidinosos: um, de penetração vaginal, e o outro, de sexo oral, sexo anal, beijo lascivo, dentre outros.

Meio termo
O tipo intermediário seria uma boa solução. Fui membro da reforma do Código Penal e propus a criação do crime de molestação sexual. Seria o caso da conduta que aconteceu no ônibus, que teria uma pena menor.

O artigo 213 tem que dizer que o estupro é constranger alguém mediante violência ou grave ameaça à prática de ato sexual vaginal, anal ou oral.
Se conseguirmos dar às coisas os nome que elas têm, vai facilitar demais. Se ejacular no rosto de alguém não é tão grave quanto forçar uma relação vaginal, então tem que estar em outro artigo da lei.

O agressor
Estamos falando de uma pessoa doente, que precisa e gostaria de ser tratada. Mas isso não significa que ele está perdoado pelo crime que cometeu. Num primeiro momento ele tem que ficar detido, porque foi preso em flagrante. E foi provado que, se ele for solto, vai ser preso de novo.

Depois, ele vai ser alvo de um processo, durante o qual vai ser submetido a uma avaliação psiquiátrica –que vai dizer se é caso de internação, se é imputável [capaz de responder pelos próprios atos].

No final do processo, o juiz vai ter que decidir se ele vai ser condenado a uma medida de segurança, no caso uma internação psiquiátrica –cujo prazo inicial é normalmente fixado em três anos.

Se for considerado imputável, aí vai ser condenado à pena de prisão. Mas o Estado terá que prover tratamento médico para ele, assim como provê para preso soropositivo.

A legislação
A lei já existe e proíbe tudo isso. O que tem que existir é uma intervenção cultural. O machismo é uma cultura patriarcal, que implanta no cérebro dos desavisados a ideia de que mulheres são escravas e objetos sexuais. Mas a lei não é assim, na Constituição nossos direitos são equiparados. Nosso arcabouço jurídico-legislativo está muito bem.

Estado atuante
Precisamos de ação do Estado, estação de metrô tem que passar filme educativo, campanha no ônibus pregando respeito à mulher.

Deve haver câmeras, agentes de segurança para fazerem socorro imediato e evitar a agressão sexual.

E, por fim, a repressão: aconteceu, vai preso. Alguns falam que a prisão é grave demais nesses casos, mas a vida das mulheres está sendo destroçada. Não tem perdão. A Justiça e a polícia têm que ser rigorosas com esse tipo de agressão. Chegamos num ponto em que as mulheres não conseguem sair na rua para tomar um ônibus.

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Raio X

Nascimento
São Paulo, em 1955

Formação
Universidade de São Paulo

Carreira
Advogada, foi membro do Ministério Público paulista durante 33 anos e secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC. É filiada ao PSD (Partido Social Democrático).


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