Folha de S. Paulo


Revisitando 'Tragic Kingdom', do No Doubt, vinte anos depois

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Revisitando 'Tragic Kingdom', do No Doubt, Vinte Anos Depois
Da esq.: Tony Kanal, Adrian Young, Gwen Stefani e Tom Dumont, do No Doubt

Quando o No Doubt estava promovendo seu disco de estreia homônimo, em 1992, um diretor de programação da estação de rádio mais influente de Los Angeles, a KROQ, disse para a gravadora da banda: "Só por um ato de Deus essa banda consegue entrar nas rádios". Três anos depois, o negligenciado grupo de ska-punk vindo da cidade vizinha de Anaheim lançou seu terceiro disco, "Tragic Kingdom", que venderia 16 milhões de cópias por todo o mundo, dando origem aos gigantescos sucessos de rádio "Just a Girl", "Spiderwebs" e, é claro, "Don't Speak". Esta faixa ficou 16 semanas consecutivas como número um na lista Hot 100 Airplay, da Billboard, o que permaneceu um recorde até ser superado por "Iris", dos Goo Goo Dolls.

Este mês, "Tragic Kingdom" celebrou seu vigésimo aniversário, e mesmo sendo um exagero dizer que o disco foi esquecido desde então, ele com certeza não é lembrado com tanto carinho quanto deveria. Devemos reconhecer que não é muito difícil descobrir o motivo disso - mesmo quando o grupo reinava nas rádios, o No Doubt nunca chegou a ser a banda mais maneira, da qual se fazia tatuagens temporárias no bíceps, e se você ainda espera de dedos cruzados por um ressurgimento do ska-punk, boa sorte aí. E há também o fato de que, hoje em dia, Gwen Stefani é mais conhecida por sua curta porém espetacular carreira solo, para não falar de seu papel como instrutora em "The Voice", do que como frontwoman de uma banda de rock; o disco de retorno do No Doubt, "Push and Shove" (2012), em grande medida desinteressante, fez pouco para mudar a situação.

Mas agora que o álbum que trouxe sucesso para a banda celebra um aniversário um tanto chocante (como assim 20 anos?), chegou a hora de revisitá-lo, senão de resgatá-lo. Ouvindo "Tragic Kingdom" hoje fica evidente que, dos 59 minutos, dez estão sobrando, e que a pessoa que decidiu colocar sua faixa mais longa e menos melódica, "The Climb", bem no meio do disco, está há vinte anos merecendo um bom tabefe. Deixando de lado essas queixas, "Tragic Kingdom" é bom demais. O disco conserva a energia frenética das faixas de ska-punk lançadas anteriormente pela banda, mas acrescenta a ela uma sujeira pós-grunge, ritmos mais dançantes, e uma sensibilidade pop muito mais forte. "Sunday Morning", "Spiderwebs", "Just a Girl", "World Go Round ", "Happy Now?" e "Hey You!" contam todas com refrãos que ficam dias quicando no seu cérebro, e a maioria das outras faixas fica na cabeça quase tanto quanto as mencionadas acima. Mas mesmo quando o No Doubt refinava sua capacidade de criar músicas e otimizava o seu som, não tinha medo de brincar um pouco. "You Can Do It" é uma faixa disco movida a trompete, que compartilha parte do seu DNA com a breguíssima música dos anos 70 "Copacabana (At the Copa)", de Barry Manilow - escute a música outra vez e vai entender o que estou dizendo.

Por mais contagiante que seja a música da banda nesse álbum, o que torna "Tragic Kingdom" verdadeiramente envolvente é ver Gwen Stefani se assumindo, e isso com aquela voz maravilhosamente esquisita dela. De início, seu inconfundível meio-soprano dividiu as opiniões. Estaria ela sendo estrangulada enquanto cantava, mas tipo só um pouquinho? De qualquer maneira, o uivo de Gwen exige atenção, e ela não soava exatamente como ninguém daquela época, e, pensando bem, como ninguém de hoje em dia. Em 1995, a Inglaterra só queria saber de britpop (com predominância do sexo masculino, exceto por bandas como Elastica, Echobelly e Lush) e de pós-grunge, o R&B dominava a lista das mais tocadas nos EUA, com Coolio, TLC, Mariah e Boyz II Men lutando para obter a coroa da música mais popular de 1995 ("Gangsta's Paradise" saiu vencedora, aliás). Claro, havia Garbage e Björk, mas em termos de artistas do sexo feminino com inclinações alternativas que passaram para o mainstream, junto de Alanis (com seu disco de estreia, "Jagged Little Pill", que dominou as ondas de rádio), Gwen era uma das poucas mulheres a liderar uma banda. Mais de um ano depois de chegar às lojas, "Tragic Kingdom" alcançou o primeiro lugar no ranking da Billboard, onde se manteve firme por oito semanas consecutivas.

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Revisitando 'Tragic Kingdom', do No Doubt, Vinte Anos Depois
Capa do disco 'Tragic Kingdom', do No Doubt

Hoje em dia, ninguém questionaria as credenciais de moda de Gwen - ela atravessou com perícia quase 30 anos no negócio, usando habilmente a própria imagem para amplificar sua música, e lançando a grife L.A.M.B e a loja Harajuku Lovers. Enquanto isso, seu estilo pessoal continua a misturar formas retrô e silhuetas revolucionárias, alternando entre trajes de uma ousadia divertida e suas raízes no estilo tomboy. Mas lá por volta de 1995 ninguém de sucesso se vestia como ela - calças baggy e um crop top ou camiseta regata eram o seu uniforme, e o umbigo de fora e a barriga tanquinho continuam a ser uma de suas marcas registradas, tantos anos depois. Da mesma forma, a morena nunca deixou que suas raízes vissem a luz do dia. Seu compromisso com os cachos platinados e lábios vermelhos continua firme, mesmo que seu gosto por bindis tenha felizmente sido abandonado - o qual, aliás, foi um acessório que Gwen adotou quando estava namorando o baixista da banda, Tony Kanal, e queria homenagear o legado indiano da família dele nas reuniões do clã Kanal. Gwen parecia luxuosa, mas também fodona, e duas décadas depois, artistas como Charli XCX e Rita Ora ainda se aproveitam dos arquivos de estilo da Gwen de 95.

Em 1995, Gwen, então com 26 anos, já liderava o No Doubt fazia sete anos, mas a maioria das letras das músicas da banda até esse ponto haviam sido escritas por seu irmão e tecladista Eric, com Gwen no papel de porta-voz. Cansado de sair em turnês, Eric deixou o No Doubt pouco depois da conclusão de "Tragic Kingdom" (ele viria se tornar um dos animadores de "Os Simpsons"), e embora tenha tocado no disco e sido autor/coautor de metade das músicas, a partida de Eric teve um forte impacto sobre o som da banda, como o guitarrista Tom Dummont explicou em uma entrevista de 1996.

"Era a primeira vez que a Gwen escrevia ela mesma todas as letras, então, para mim, o caminho foi o oposto de se vender - fizemos uma coisa ainda mais pessoal", ele contou à "Backstage Online". "Antes, Eric escrevia músicas sobre a vida dele e colocava Gwen para cantar. Agora temos Gwen cantando e escrevendo sobre suas próprias experiências. Isso torna a coisa mais natural. Ela é uma cantora, e deveria cantar sobre si mesma, ou cantar o que tem vontade. Acho que essa é a principal razão do nosso estilo musical ter mudado."

Os assuntos sobre os quais Gwen queria cantar eram, e ainda são, incrivelmente reconhecíveis para qualquer pessoa ainda procurando um caminho na vida. Em "Different People" ela lida com seu lugar em um mundo cheio de "pessoas diferentes, e todas suas maneiras de pensar diferentes", enquanto o estrelato pop iminente lhe acena. "You don't have to be a famous person just to make your mark" ("Você não precisa ser uma pessoa famosa para deixar a sua marca"), ela canta no primeiro verso, soando como se estivesse tentando convencer a si mesma tanto quanto o público. E continua: "A mother can be an inspiration to her little son / Change his thoughts, his mind, his life, just with her gentle hum." ("Uma mãe pode ser uma inspiração para seu filhinho / Mudar sua maneira de pensar, sua mente, sua vida, usando apenas seu cantarolar gentil"). Vinte anos depois, esses dois versos parecem um belo resumo do dilema maternidade versus carreira para a geração TMZ.

"Different People" é um dos vários destaques de "Tragic Kingdom" que só poderiam ter sido escritos por uma mulher inteligente, ambiciosa e um tanto confusa. Em "Hey You!" vemos Gwen olhando com desconfiança um casal recém-casado que são "iguaizinhos meus bonecos do Ken e da Barbie", enquanto "Just a Girl" é um hino feminista ferinamente sarcástico, inspirado por uma bronca que Gwen levou do pai depois que ficou fora até tarde na companhia de Kanal, e voltou para casa sozinha. "Oh I'm just a girl / All pretty and petite / So don't let me have any rights" ("Ah, sou só uma menina / Toda linda e pequenina / Então não me deixe ter nenhum direito"), ela escarnece antes de suspirar "Oh, I've had it up to here!" ("Ah, estou por aqui!") por cima do final da música. Depois, há "Spiderwebs", que é essencialmente uma "Bug a Boo" (do Destiny's Child) para a era pré-telefone celular, enquanto em "Excuse Me Mr." Gwen se coloca no papel de uma garota simplesmente desesperada para chamar a atenção de um cara, com uma atitude meio pateta em termos sonoros e tudo. Curiosamente, no último verão antes do lançamento de "Tragic Kingdom", Gwen chamou a atenção de um homem que ao menos em parte serviria de inspiração para sua arte pelas duas décadas seguintes: Gavin Rossdale, do Bush. O encontro fatídico entre os dois, e a atração imediata que rolou, ocorreu quando as duas bandas estavam em turnê com o Goo Goo Dolls. Eles começaram a namorar logo depois, e se casaram sete anos mais tarde, com Rossdale inspirando várias canções futuras, tanto do No Doubt quanto solo, incluindo "Don't Let Me Down" e "U Started It" - você consegue adivinhar sobre o que são essas duas? - antes que Gwen pedisse o divórcio em agosto último, alegando "diferenças irreconciliáveis". Tanto em termos pessoais quanto profissionais, 1995 foi um ano enorme para La Stefani.

"Don't Speak", hit do No Doubt

Mas, apesar de Rossdale, uma seleção das melhores músicas de "Tragic Kingdom" girava em torno de outro relacionamento chave para Gwen: seu namorado e baixista do No Doubt Tony Kanal, e a dolorida e poderosa balada "Don't Speak" se tornou o resumo de sua tristeza pós-separação. À época era uma música totalmente inescapável, mas talvez por ter sido diluída por um excesso de familiaridade, as músicas de separação menos conhecidas do disco batem mais forte hoje em dia. "Happy Now?" é cheia de amargura e de desafio, "Sunday Morning" documenta uma inesperada inversão de papéis - de repente ele a quer de volta - e em "End it on This" vemos Gwen finalmente jogar a toalha. Mas, longe de se deixar vencer, "You Can Do It" é a música pare-de-choradeira-e-dê-a-volta-por-cima de Gwen.

O No Doubt viria a fazer um disco mais sofisticado com "Return of Saturn", de 2000 (a maior parte das letras do álbum é dominada pelos instáveis primeiros tempos de seu relacionamento com Rossdale), seguido por "Rock Steady", de 2001, que recebeu um ajuste fino da dupla The Neptunes e de William Orbit para obter sucesso nas vendas antes que Gwen fizesse a inevitável passagem para a carreira solo em meados dos anos 2000. Mas "Tragic Kingdom" continua sendo o momento decisivo da banda, um disco revolucionário da carreira, que é sincero, apaixonado e reconfortantemente imperfeito. Um disco sobre fim de relacionamento, sobre crescer, e sobre pensar nas coisas; sobre nem sempre saber a resposta e seguir em frente mesmo assim. O guitarrista Tom Dummont resumiu seu impacto pessoal em seu Tumblr recentemente: "O turbilhão da turnê mundial e da extensa campanha de promoção de "Tragic Kingdom" se estendeu por dois anos e meio, e ao final deles nós éramos não só astros do rock, como também homens e mulheres." Não é necessário um ato de Deus para que você ouça novamente, mas o aniversário de 20 anos parece uma desculpa perfeita para mergulhar nesse disco.

A matéria original pode ser lida aqui.


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