Folha de S. Paulo


O filme que virou aldeia

É bem capaz que você já tenha visto o nome de Hans Staden por aí. O mercenário alemão aparece em letreiros de prédios, ruas, avenidas, estátuas, um livro de Monteiro Lobato e até em um samba-enredo de carnaval. No período em que residiu no Brasil, entre 1551 e 1554, o gringo viveu grandes epopéias pela costa brasileira –a maior, dizia, foi ser aprisionado por nove meses numa aldeia dos índios Tupinambás no litoral entre São Paulo e Rio de Janeiro. De volta à Europa, anos mais tarde, o explorador escreveu um livro que se tornou precioso registro histórico do modo de vida dos índios no país.

Felipe Larozza/VICE

O que nenhum diário mostra é que uma dessas homenagens póstumas a Hans Staden, um filme biográfico dirigido nos anos 90 pelo cineasta Luis Alberto Pereira, é, ainda hoje, um retrato vivo da história indígena no país. Isso porque, no local em que a equipe do filme recriou as ocas do século 16 no litoral paulista, formou-se, para o espanto de qualquer ficcionista, uma aldeia de verdade.

Há pelo menos quinze anos, os índios convidados para atuar como figurantes no filme se instalaram pela paisagem cenográfica e construíram uma aldeia nova, viva, real. E o mais impressionante: as etnias indígenas continuam a misturar suas culturas pelo local.

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Cena do filme
Cena do filme "Hans Staden"

A história da aldeia começou em 1997, quando, para as filmagens de "Hans Staden", os produtores escolheram como cenário os arredores de Ubatuba. A escolha não foi gratuita; além das belas paisagens, a região ficava no território onde viviam os Tupinambás no século 16. (O próprio nome Ubatuba deriva de Uwaibiti, que Staden afirmou ser o nome da aldeia onde ficou aprisionado.)

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Para reforçar o vínculo entre passado e presente, foram construídas duas imensas ocas cenográficas semelhantes às descritas no relato do aventureiro. Alguns índios foram contratados para fazer figuração e pequenos papéis. Concluídas as filmagens, as construções foram deixadas desocupadas, e o mato cobriu o antigo cenário.

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Aldeia Renascer, 2015
Aldeia Renascer, 2015

Mas não por muito tempo. Cerca de um ano depois, alguns dos indígenas que haviam participado do filme resolveram se instalar por ali. Seis famílias de índios das etnias Guarani Mbya e Tupi-Guarani com 32 integrantes se mudaram para as ocas. Dos restos da Uwaibiti cenográfica nascia a aldeia Ywyty-Guaçu, também chamada de Renascer.

No mesmo dia em que ocuparam o terreno, os índios receberam uma visita do então proprietário das terras, que chegou disparando tiros para o alto. Tempos depois, um membro da produção do filme foi até lá e perguntou ao cacique quanto dinheiro o grupo queria para desocupar as ocas. A resposta do chefe indígena foi molhar uma lança no veneno e mostrá-la ao visitante. Nunca mais foram incomodados.

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Se a Uwaibiti do cinema era uma recriação do mundo indígena do século 16, a Renascer é uma espécie de aldeia modelo do século 21. As ocas duraram algum tempo, mas, como eram feitas de madeira sem tratamento, caíram com o passar dos anos. Hoje a maioria dos seus cerca de 80 moradores vive em casas de alvenaria. Eles têm escola –há uma nova em construção–, posto de saúde e dispõem de um carro para eventuais deslocamentos. Alguns trabalham como funcionários públicos. São motoristas, professores, agentes de saúde ou de saneamento. Não há doenças, alcoolismo nem desnutrição. Seus moradores alimentam um blog oficial e se comunicam pelo Facebook. Os celulares são comuns, as crianças jogam games em TVs de plasma e navegam na internet com wi-fi.

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Mas se engana quem confunde acesso à tecnologia e serviços públicos com perda da identidade cultural. Na Renascer, as lideranças buscam ao máximo preservar e recuperar as tradições. Os ciclos básicos da escola ensinam Tupi-Guarani e Guarani, e os pais só se dirigem às crianças neste idioma. Diariamente são feitos rituais religiosos na casa de rezas. Não há igreja católica ou evangélica, nem se encoraja a adesão a elas. O trabalho com lavoura é feito de forma tradicional, assim como o artesanato. Muitas mudas de árvores frutíferas foram replantadas, o que trouxe a presença de animais silvestres - caçados pelos índios sem arma de fogo. O consumo de álcool é desencorajado, e quem descumpre a regra pode ser convidado a se retirar. O casamento entre indígenas e brancos chegou a ser proibido pelo cacique e ainda não é muito estimulado. Caso um branco se mude para lá, deve falar com as crianças na língua indígena também.

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SONHOS E POSSE

Para seus fundadores, a Renascer não nasceu de um filme; nasceu de um sonho. "Minha mãe tinha sonhado com esta região e dizia que, antes de morrer, queria vir morar aqui", conta o cacique Antônio Awá, de 60 anos, um dos participantes do filme. "Pelos sonhos, os mais velhos conseguem saber, espiritualmente, onde os nossos antepassados viveram. Tanto que minha mãe nunca tinha vivido por aqui, ela era do Mato Grosso e veio caminhando de lá. Quando eu sonhei com ela, decidi vir pra Ubatuba", diz.

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Antônio Awa
Antônio Awa

A antropóloga Amanda Danaga faz doutorado na Universidade Federal de São Carlos e realiza sua pesquisa entre os Tupi-Guarani da aldeia Renascer. Ela explica que os sonhos são ainda hoje um elemento central na cosmologia e no modo de vida dos Guarani, que se caracteriza por deslocamentos constantes. "Eles não estão preocupados com a terra em si, querem é estar num lugar onde se sintam bem. E mesmo depois que encontram um lugar assim, podem ter um sonho e decidir mudar de lugar", diz.

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Crianças jogando bola na aldeia Renascer
Crianças jogando bola na aldeia Renascer

O próprio Antônio Awá já havia sido cacique durante cinco anos numa outra aldeia que fundou nos anos 1980. "Foi minha mãe quem mandou essas pessoas me procurarem e me convidarem para criar esta aldeia aqui", crê o cacique. "Está tudo acontecendo como ela falou. Tanto que as outras pessoas que ajudaram a criar a aldeia já se foram e eu ainda estou aqui." De fato, das 17 famílias que residem hoje na Renascer, apenas a do cacique permanece lá. E a população flutua. "Tem épocas que chegamos a ter 150 pessoas vivendo aqui", conta o vice-cacique Cristiano, filho de Antônio Awá.

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Cristiano
Cristiano

Mais do que um caso curioso, o surgimento da Renascer expressa o crescimento dos povos indígenas de São Paulo. Segundo dados do Censo de 2010, hoje vivem mais de 40 mil índios no estado. Um levantamento da Comissão do Índio de São Paulo feito em 2013 relaciona 29 terras indígenas (hoje o termo "reserva" é considerado politicamente incorreto) com alguma forma de reconhecimento oficial enquanto pelo menos outras dez ainda não tiveram iniciados seus trâmites de regularização –embora já sirvam como espaço de residência para estes grupos. Ou seja, nos próximos anos, o total de terras indígenas no estado pode crescer mais de 30%.

Mas o crescimento pode ocorrer dentro de uma mesma terra indígena. Isto é, novas aldeias podem ser fundadas no mesmo espaço. "Há uma tendência de aumento no número de aldeias no sudeste do Brasil e em especial no litoral do estado de São Paulo", diz Amanda. Em 2012, ela listou 29 aldeias no litoral paulista. "Hoje, apenas três anos depois, esse número precisa ser atualizado. Só numa terra indígena onde trabalhei há sete anos surgiram três aldeias desde então", diz. Até fins dos anos 1980 havia no litoral uma única aldeia da etnia Tupi-Guarani. Hoje são 12. Cristiano, vice-cacique, viaja bastante para as reuniões do movimento indígena e confirma a expansão indígena no estado. "Antes tínhamos vinte e poucas aldeias em São Paulo. Hoje são mais de 70", diz.

Neste ano, aldeia Tekoa Ytakupe, fundada há pouco tempo na região do Pico do Jaraguá, na Grande São Paulo, foi muito falada nas manchetes. Em março passado, uma ordem de reintegração de posse contra os habitantes da aldeia espalhou tensão na região e foi noticiada até na imprensa britânica. O cacique da Tekoa Itakupe, o Guarani Ari, é um dos fundadores da Renascer, e só posteriormente foi fundar a aldeia do Jaraguá.

A NOVA ANDANÇA INDÍGENA

Há várias possíveis explicações para o crescimento das aldeias. Antônio Awá diz que a população está crescendo, em parte, devido ao movimento migratório. "Estão vindo parentes Guarani da Argentina e do Paraguai. Até quando falam Guarani dá para ver uma influência do castelhano. Eles estão vivendo como se fazia antigamente, quando os índios não ficavam muito tempo num lugar", diz. "Quando acabava a caça, eles procuravam outro lugar. Hoje os índios estão se movimentando muito de novo."

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Há décadas os antropólogos sabem que a migração constante é um elemento central da cultura Guarani. Há registros de Guaranis que chegaram a São Paulo ainda no século 19. Muitas vezes, no entanto, são deslocamentos de retorno a regiões que eles acreditam terem sido habitadas por seus ancestrais. "Houve grandes andanças de Tupis e Guaranis por esta região no passado. O surgimento destas aldeias é um movimento de reocupação de lugares que para eles sempre foram territórios tradicionais", diz Amanda.

O antropólogo Universidade Estadual Paulista Edmundo Peggion concorda. Ele é orientador de Amanda, e os dois estão organizando um livro em que analisam a situação dos índios em São Paulo. "Os Guarani não se estabelecem em qualquer lugar, só onde eles veem algum vínculo com sua memória ou ancestralidade. As migrações dos Guarani são antigas, eles vieram e começaram a dividir espaço com os Tupi. Mas só começaram a ser documentadas a partir do século 20."

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Ele acredita que outro componente pode ocasionar o aumento no número de aldeias. "Há um processo de consciência politica vinculado à reivindicação dos direitos. Essas terras já eram reivindicadas antes, mas não existia, talvez, a documentação que regularizava esta reivindicação. Não é só uma questão de aumento populacional", analisa Edmundo. "Até os anos 1980 a politica do estado brasileiro era assimilar os índios", diz Amanda. "Muitos indígenas que deixaram as aldeias mas permaneceram pelo litoral foram chamados por termos como caiçaras ou praianos. Mas hoje muitos estão compreendendo que, apesar de não viverem em aldeias por muito tempo, sempre foram índios."

Na Renascer, a maior parte das famílias pertence às etnias dos Guarani Mbya e dos Tupi-Guarani, embora também residam lá mulheres brancas e uma Krenak. Os Tupi-Guarani não se veem como uma etnia "pura", mas sim como o resultado de uma mistura de vários grupos. Entre eles, os mesmos Tupinambá que aprisionaram Staden.

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Como a aldeia abriga pessoas de ambas as culturas, a convivência cria também uma amálgama de elementos. Por exemplo: todos os dias, após o anoitecer, os membros da aldeia se encontram numa casa batizada de casa de reza, para participarem de um ritual que envolve canto, dança, música com instrumentos como violão e violino e uso de cachimbo com tabaco em largas quantidades. Parte dos participantes do ritual se inclina diante de um objeto chamado kurutchu, que é uma espécie de cruz. O artefato, o uso de violão e até a própria casa de reza são elementos Guaranis que os Tupi adotaram em suas práticas religiosas. "Essa cruz é uma invenção católica, mas hoje é dos Guarani e para nós ela representa Nhanderu (Deus)", diz o cacique.

"A gente ensina as crianças que antes não tinha isso, mas tem que acompanhar as mudanças. Com a casa de reza, a gente pode se reunir mesmo que esteja chovendo, e isso é uma coisa boa", pondera Antônio Awá. "Mas a cultura é quase a mesma, somos irmãos."

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Mesmo pensando assim, ele se preocupa com o futuro da cultura Tupi e planeja reunir os anciões da etnia e registrar todo o conhecimento tradicional por escrito, a fim de assegurar sua continuidade às próximas gerações. "É preciso que em todas as aldeias a gente tenha os mesmos ensinamentos, o mesmo calendário. Se não é capaz de o branco dizer 'mas eles nem sabem quem eles são?'".

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Antônio Awa (ao fundo na esquerda) e Hans Staden na mesma cena
Antônio Awa (ao fundo na esquerda) e Hans Staden na mesma cena

Ano passado, os moradores da Renascer receberam a visita de indígenas do Paraná, e a programação inclui uma sessão do DVD de "Hans Staden". Para Antônio Awá, não foi um momento de lazer, mas de memória. "O filme mostra que os próprios brancos da época escreveram que a gente vivia aqui. Não tem como alguém falar que a gente não tem ligação com essa terra", afirma.

Leia na Vice: O filme que virou aldeia


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