Folha de S. Paulo


Somos todos gamers, e é hora de aceitar isso

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Foto via usuário do Flickr
Foto via usuário do Flickr Jorge Figeroa

Nunca houve uma época melhor para ser gamer.

Jogos de grande orçamento de tirar o fôlego são lançados regularmente; então, nunca ficamos sem um mundo novo para explorar ou uma aventura para embarcar. Só na primeira metade de 2015, fomos imersos nos ambientes gigantescos de Bloodborne, The Witcher 3 e Batman: Arkham Knight.

Jogos indies são mais difundidos que nunca. Títulos como Her Story, Thomas Was Alone, Spelunky e vários outros ganharam uma base de fãs que seria inimaginável no começo do milênio (e, claro, não há melhor exemplo disso que Minecraft).

Há mais games do que nunca. Vivemos num mundo onde incontáveis novos jogos estão disponíveis diariamente para todos, alguns totalmente gratuitos. E, graças à distribuição digital, podemos tê-los na mão em questão de minutos. Entediado com um título? É só baixar outro.

Ainda assim, há gamers que não gostam de como as coisas estão caminhando. Gente que sente que a definição do título - gamer - está sendo desafiada e não gosta nada disso.

Alguns acham que você não é gamer se não jogar num console tradicional ou no PC um jogo de tiro em primeira pessoa, um RPG, uma plataforma 3D. Se você é do tipo que só joga no celular ou é viciado em Pirate Kings no Facebook, você não conta como gamer.

Pior ainda se você for mulher. Desde os anos 80, o termo gamer é associado principalmente a homens entre 15 e 30 anos. A expressão "garota gamer" não ajudou em nada, perpetuando a ideia de que uma mulher participar de um passatempo tradicionalmente dominado por homens deve ser considerado uma exceção, com seu próprio termo especial para apontar isso.

Sendo assim, o conceito de uma empresária jogando Candy Crush Saga no metrô em direção ao trabalho passava longe da definição de gamer.

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Se você jogou Candy Crush Saga no caminho pro trabalho hoje, você é um gamer.
Se você jogou Candy Crush Saga no caminho pro trabalho hoje, você é um gamer. Imagem via YouTube

Claro, essa gente está errada. Todo mundo que gosta de jogar videogames, independentemente de formato, gênero ou orçamento, é um gamer. O amor do seu irmão menor por Pokémon faz dele um gamer. Quando sua avó joga tênis no Wii Sports, ela também é uma gamer. O vício do seu pai em Football Manager e a habilidade irritante da sua mãe de acabar com você no Tetris (tipo a minha mãe) fazem deles gamers.

Lembro-me de uma época em que não era assim - ou, pelo menos, quando ninguém admitia isso. Quando moleque, eu era um grande gamer, correndo da escola para casa todo dia a fim de jogar NES, SNES ou Mega Drive. Eu tinha alguns amigos que também jogavam, mas eram todos meninos.

As garotas da minha escola nunca falavam sobre videogame. Meus pais nunca falavam nisso. Videogame quase nunca era mencionado na televisão, exceto quando o fantástico GamesMaster (o programa do horário nobre da TV inglesa que deu certa legitimidade aos videogames) estava no ar.

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Não era que as meninas não jogassem videogame na época. Minha prima tinha um NES e trocava jogos comigo: eu dava Super Mario Bros. para ela, ela me dava Zelda II. E, em muitas noites, encontrei meu pai jogando Desert Strike escondido no meu Mega Drive.

Na época, era quase como se jogar videogame fosse uma vergonha se você não fosse um menino. Se você conhecia uma garota que jogava, isso era algo raro; por outro lado, conhecer um adulto que também jogasse era algo ainda mais incrível.

Hoje em dia, esse estigma não existe mais, certamente não na mesma extensão de 20 anos atrás. Pessoas de todas as idades e gêneros jogam videogame hoje - logo, por que achar isso ruim?

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Se você já jogou Wii Sports com a sua família no Natal, você é um gamer.
Se você já jogou Wii Sports com a sua família no Natal, você é um gamer. Imagem via YouTube

Pode ser porque, para as novas gerações de gamers, o videogame tem poucas conotações negativas. O PlayStation tornou consoles algo normal para homens de 20 e poucos anos, fazendo disso algo que você não precisa abandonar quando não é mais criança. Arriscando-me a parecer um velho chato aqui, gamers da minha idade vão lembrar como era querer que nosso hobby fosse considerado legítimo pelo resto da sociedade, que ainda pensava que isso era coisa de crianças: uma luta que a geração PlayStation nunca conheceu.

Os garotos dos anos 80 ganhavam seus jogos de console no Natal e voltavam para seus quartos, adorando o presente, mas secretamente querendo que o resto da família acompanhasse. Um dos grandes momentos de gamer na minha vida foi quando minha família jogou tênis no Wii Sports no Natal de 2006. Sim, algo básico. E, sim, como um "verdadeiro" gamer, eu sabia que os controles eram muito limitados. Mas ver meus familiares se divertindo com algo de que sempre gostei sozinho foi lindo.

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Se sua mãe acaba com você no Tetris do Game Boy (ou em qualquer outro minigame), ela é uma gamer.
Se sua mãe acaba com você no Tetris do Game Boy (ou em qualquer outro minigame), ela é uma gamer. Imagem via YouTube

Alguns acreditam que o Wii foi o começo do problema, que isso foi uma tentativa da Nintendo de abordar a nova demografia dos chamados não jogadores casuais, o que distorceu a paisagem da indústria dos videogames e trouxe uma enxurrada de jogos de festa, treinamento cerebral e fitness. Essas pessoas acreditam que o avanço dos games casuais levou ao crescimento dos jogos de celular e à maldição do jogo gratuito.

Duas coisas vêm à mente. A primeira, francamente, é shiu. O medo de alguns autoproclamados gamers de que seu precioso hobby seja tomado por mulheres e casuais é completamente infundado, além de bobo e irritante para gamers como eu, que têm certeza de uma coisa: essa gente não fala por todos nós.

Segundo, muitos deles não percebem que os jogos casuais, que eles acham que estão prejudicando a indústria, na verdade ajudam a financiar os títulos "hardcore" que eles tanto amam. Um bom videogame triplo A hoje custa dezenas de milhões de dólares para se desenvolver, distribuir e lançar - e, com os sistemas ficando cada vez mais poderosos, esse valor só vai subir. Alguns desses custos podem ser cobertos por coisas como conteúdo extra para download (ou DLC), mas há outra maneira de financiá-los: fazendo games menores e mais baratos que atinjam um público maior.

Veja a desenvolvedora e editora Electronic Arts, por exemplo. Jogos que ainda serão lançados, como Star Wars: Battlefront, Need For Speed, Mirror's Edge Catalyst e Mass Effect: Andromeda, não vão sair baratos - longe disso. No entanto, o departamento de games de celular da EA lança títulos muito mais baratos de se fazer, que agradam um público maior e levantam muito dinheiro que a empresa pode canalizar para jogos mais caros.

The Simpsons: Tapped Out é um jogo de simulação urbana básico, porém, no começo de 2014, a EA já tinha feito mais de US$ 130 milhões com ele. O suficiente para fazer três ou quatro games triplo A para console.

De modo similar, podemos argumentar que, se a Nintendo não tivesse lançado Wii Sports (82 milhões de cópias vendidas), os primeiros jogos Brain Training (33 milhões juntos) ou Wii Fit (22 milhões), a empresa estaria em grandes problemas financeiros. No melhor dos casos, eles não teriam dinheiro para financiar títulos mais elaborados que venderam menos (como Pikmin 3, Fire Emblem: Awakening, Sin & Punishment: Star Successor ou Luigi's Mansion: DarkMoon). No pior dos casos? Bom, veja o que aconteceu com a SEGA.

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Se você se apaixonou por Pikmin 3 quando comprou seu Wii U, você é um gamer. Imagem via Nintendo]
Se você se apaixonou por Pikmin 3 quando comprou seu Wii U, você é um gamer. Imagem via Nintendo]":https://www.nintendo.co.uk/Games/Wii-U/Pikmin-3-640076.html

O que muita gente esquece é que essas coisas vêm em círculos: o crescimento de gamers mulheres e casuais no mercado não significa que eles vão "dominar" os videogames. Significa que eles vão bancar essa indústria. Afinal de contas, você quer falar de um título simples e casual que atingiu pessoas de todas as idades, gêneros e níveis de jogo? Basta ver as notícias dos anos 80 sobre quando Pac-Man foi lançado: homens, mulheres e crianças lotaram os fliperamas para jogar.

Se alguém me dissesse quando eu era criança que um dia todo mundo estaria jogando videogames - que um dia meninos, meninas, adultos, todo mundo poderia não só ser um gamer como discutir abertamente sobre os jogos e não ter de esconder isso com medo de parecer nerd -, eu ficaria encantado.

O termo gamer não significa mais o que os xiitas da cena querem que ele signifique. Todo mundo é um gamer hoje: o moleque adolescente que joga dez horas de Battlefield, a empresária que é um paladino nível 70 em World of Warcraft, sua tia que joga Pokémon Y para trocar com seu sobrinho que joga Pokémon X... até o cara no trem que só quer se distrair jogando Angry Birds no caminho pro trabalho.

Somos todos gamers, aceite.


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