Folha de S. Paulo


A inteligência artificial que aprendeu a jogar 'Magic: The Gathering'

"Magic: the Gathering" é um fenômeno complexo da nerdice: é parte Senhor dos Aneis, parte xadrez. Em tempos melhores, quando eu era só um moleque olhudo com um punhado de cartas, o jogo era bastante casual - longe, bem longe de ser a indústria que movimenta 250 milhões de dólares por ano nos dias de hoje.

Em 2015, o game é sinônimo de negócios e uma baita subcultura, que agora conta com sua própria inteligência artificial capaz de gerar milhares de novas cartas ao coletar dados das antigas.

Reed Morgan Milewicz, programador pesquisador de ciências da computação, foi primeira pessoa a ter ensinado uma máquina a jogar Magic. Ele impressionou populares fóruns da internet quando postou os resultados de um experimento que ensinaria uma fraca inteligência artificial a gerar cartas do joguinho.

Milewicz compartilhou uma série de "cartas" bizarras que seu programa havia criado. Todas tinham fantásticos nomes ("Shring o Artista, "Cetro de Mided Hied Parira") e habilidades nunca antes vistas ("fundirdevolta"). Os jogadores devoraram os resultados.

Milewicz é estudante de PhD no Departamento de Ciências da Computação e Informação da Universidade do Alabama em Birmingham, nos Estados Unidos, onde trabalha no laboratório iProgress. Ele esbarrou em um artigo escrito por um de seus colegas, Andrej Karpathy, que estuda aprendizado de máquinas em Stanford.

Karpathy estava mexendo com redes neurais profundas e recorrentes - um modelo de aprendizado estatístico para máquinas que emula as redes neurais de cérebros de animais - para que "lessem" livros, "aprendessem" seu estilo e assim criassem seus textos.

Milewicz quis fazer o mesmo com o Magic. Logo, botou a rede neural pra devorar um banco de dados com todas as cartas de Magic existentes até o momento.

Para saber mais sobre o projeto, atravessei uma onda estonteante de nostalgia e um breve processo de cadastro no fórum MTG Salvation onde Milewicz havia postado sobre sua criação sob o avatar Talcos. Seria a primeira e provavelmente única entrevista que eu faria sob o codinome "bigbrianthebold.

"Jogo Magic há um bom tempo", disse Milewicz durante uma de nossas conversas. "Comecei a jogar quando estava na 1ª série e tem sido um passatempo meu desde então."

O cara é fã mesmo. E bem mais que isso. (Para propósitos de compreensão deste texto devo mencionar aqui alguns dos elementos básicos de Magic: existem cinco cores que os jogadores podem usar para montar seus decks - branco, azul, verde, vermelho preto. Jogadores usam "magias" e "criaturas" de diferentes tipos, como os "Tritões".

O objetivo do jogo é montar um exército ou causar danos o suficiente com magias para acabar com os pontos de vida do adversário. Entendeu? Não? Então leia mais aqui e volte, ok?)

"Tenho interesse na engenharia reversa de regras de sistemas complexos", disse. "É exatamente o que fazemos com o criador de cartas de Magic. As cartas são produtos de uma série de regras; algumas delas do próprio jogo (criaturas que tem força e resistência), outras criativas (o que torna as cartas brancas diferentes das azuis?)." Essas regras nunca deixaram de se expandir. Há pouco tentei jogar Magic com meus vizinhos e mal reconheci o jogo.

Webwetwork, Flickr/Vice
Cartas de Magic de verdade
Cartas de Magic de verdade

"Para conseguir gerar novas cartas de Magic", disse Milewicz, "a rede neural recorrente tem que fazer a engenharia reversa de todas essas regras, o que pode fazer muito bem, mesmo sem qualquer conhecimento prévio do game ou de inglês ou de qualquer coisa. Todo seu conhecimento deriva meramente do estudo de frequências das sequências de símbolos - nada além disso. É um conceito poderoso que exploro em minha pesquisa".

Aqui a carta que ele diz ser uma de suas cartas novas favoritas:

Korvo Escorregochocante

U

Criatura - Dragão

Pesoteio, Muntanhizzmo

Tromple, Mointainspalk

4/2

Para qualquer um familiarizado com Magic - e já me entreguei aqui - ficará claro que esta é uma carta ridícula em todos os sentidos. É ridiculamente poderosa e suas habilidades não estão lá muito bem definidas (a ideia da IA era emular Pisoteio e Montanhismo, duas habilidades que as criaturas do jogo geralmente tem). Mas, além da ortografia péssima, todos os outros detalhes estão certinhos; poderia ser uma carta do jogo. Não quebra nenhuma regra.

Ao passo em que Milewicz continuava a treinar o programa, ele aprendia mais e mais sobre o universo das cartas de Magic e como a mecânica do jogo funciona. As cartas começaram a ficar cada vez mais "realistas", ou seja, mais próximas daquilo que você encontraria ao abrir um pacote de cartas. Ela estava aprendendo.

"O que estamos fazendo é alimentar uma rede neural com textos, um caractere após o outro, e a treinando para prever que caracteres virão em seguida. Eu digo 'C r i a t u r' e ela prevê o 'a'; e se eu digo 'Saque duas' ela deveria prever 'cartas'.

É uma rede profunda e extensa, de diversas camadas, de memória de curto prazo, ou seja, é composta de diversas unidades de rede capazes de armazenarem e esquecerem condicionalmente as informações recebidas", explica Milewics. Isso explica como a rede vai ficando "mais esperta". Algumas das cartas criadas por ela mal podem ser distinguidas das verdadeiras. E o programador planeja levar o programa ainda mais adiante.

"A rede pode lembrar o que viu antes e suas previsões, ou seja, pode fazer previsões mais robustas no futuro", disse. "Por exemplo, ela viu a palavra 'Tritão' no título de uma carta e, depois, quando chegar a hora de prever a cor da carta, ela poderá prever azul já que Tritões em geral são azuis.

Assim, ao longo do tempo, a inteligência artificial aprende as 'regras' que regem as cartas de Magic. Cartas pretas fazem isso, brancas aquilo. Cartas de criaturas fazem isso, de terreno."

Como se espera de uma inteligência artificial, tudo funciona com muita rapidez. Agora mesmo, de acordo com a Gamepedia, existem 13.651 cartas de Magic no conjunto oficial e Milewicz seria capaz de dobrar essa contagem com alguns cliques. "Claro que existem tantas cartas que não tenho como mostrar para todos (posso gerar milhões de cartas por vez, e todas são fascinantes ao seu modo)", escreveu.

Sentindo uma bizarra tensão e uma nostalgia de distantes dias de verão em que passava em meio à cartas na cozinha, fiz a Milewicz a inevitável pergunta: quanto tempo até uma inteligência artificial criar as cartas de Magic para nós?

"Depende de como você vê observa a coisa", disse. "Se você fala dos status das cartas, sua disposição em conjuntos, com todos os testes e balanceamentos necessários, seria viável em um futuro próximo."

A Wizards of the Coast, empresa que lança as cartas, de propriedade da Hasbro, não parece muito preocupada. "Muita gente me pergunta sobre a inteligência artifical que cria cartas", disse o designer-chefe da de Magic, Mark Rosewater, no Tumblr. "Não dei uma olhada ainda, mas minhas fontes me dizem que ainda não ficarei desempregado."

Dada a frequência com que a WotC lança expansões lucrativas, é difícil não levar em conta a possibilidade de que o aprendizado de máquinas algum dia poderia auxiliar ou acelerar tal processo. Criar o jogo se traduz em muito trabalho, muitos testes, muitos textos e muita arte. E se uma máquina pudesse partir pro que interessa?

"Mas não é por isso que as pessoas jogam Magic, no final das contas", afirma Milewicz. "Elas jogariam o jogo se cada carta fosse um papel sem nada só com uns números rabiscados? Não. Jogos como Magic são populares porque são veículos de uma narrativa. O jogo transforma seus jogadores em um aventureiro, viajando por locais exóticos e encontrando monstros mágicos."

Trata-se de um pensamento comum quando falamos que a inteligência artificial auxilia empreitadas humanas: as máquinas podem muito bem escrever textos simples sobre terremotos e placares esportivos, claro - mas precisamos de humanos para dar alma à parada. Pelo menos por enquanto.

Tradução THIAGO "ÍNDIO" SILVA


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