Folha de S. Paulo


O fotógrafo Vincent Cianni conta as histórias dos gays no Exército norte-americano

Vincent Cianni
O Fotógrafo Vincent Cianni Conta as Histórias dos Gays no Exército Norte-americanoZachary Werth (esquerda) e Dustin Hiersekorn (direita)
O Fotógrafo Vincent Cianni Conta as Histórias dos Gays no Exército Norte-americanoZachary Werth (esquerda) e Dustin Hiersekorn (direita)

O livro de 2014 de Vincent Cianni Gays in the Military é um relato fotográfico e pessoal da vida sob a proibição de gays no Exército dos EUA, que começou em 1949 e foi seguida pela política Don't Ask Don't Tell (DADT), que começou em 1993. O DADT era um compromisso dizendo que você podia ser gay e servir o exército, mas só se mantivesse isso em segredo. Quem tinha um parceiro do mesmo sexo não podia nem contar para os colegas soldados se ele ficasse doente ou morresse.

Mas para os gays servindo o exército, o caminho até 2011 - quando a política foi mudada - era cheio de sofrimento em silêncio, transtorno de stress pós-traumático e, em alguns casos, suicídio. Hoje, servir o exército ainda pode ser uma experiência cheia de preconceitos. O livro de Cianni tem fotografias e entrevistas reunidas em viagens por todos os EUA durante três anos. Ele perguntou a pessoas LGBT o que as fez querer servir uma instituição que não as aceitava, e os efeitos de longo prazo que isso teve nelas.

Os temas vão de um veterano de 92 anos da Segunda Guerra Mundial a soldados que serviram recentemente no Afeganistão. Ligamos para Cianni para falar sobre seu livro e experiências com as pessoas que fizeram parte de um sistema tão opressor.

VICE: Por que você se interessou por esse assunto?
Vincent Cianni: Cresci durante o levante cultural e político dos anos 60, durante o auge da Guerra Fria. Fui um colegial sem noção mas politicamente consciente e um universitário hippie quando o conflito no Vietnã virou uma guerra. Minhas convicções eram tão fortes que eu estava pronto para fugir para o Canadá se meu número fosse chamado. Passei a maior parte da minha vida desinteressado sobre o exército porque eu apoiava a paz, a luta para acabar com a violência e a injustiça, e a santidade da vida. Eu não entendia como alguém queria entrar para o exército, muito menos por que pessoas gays se alistariam numa organização que as evitava.

Em novembro de 2009, eu estava ouvindo uma estação pública de rádio. A mãe de um soldado gay dispensado de 19 anos, mobilizado no Iraque, estava sendo entrevistada. Quando ouvi a mãe de Nathanael Bodon falar sobre ele com amor, orgulho e confiança, pensei nas minhas próprias experiências tendo que esconder minha identidade da família, amigos e colegas, e ser alvo de preconceito e crimes de ódio.

Como fotógrafo documental e contador de histórias, percebi que não importavam minhas convicções pessoais e que a história ali, a história dos soldados e veteranos LGBT, era a história de pessoas que tiveram seus direitos civis negados e que, em muitos casos, foram sujeitas a tratamento injusto e abuso de direitos humanos. Como parte dessa comunidade que continua a lutar por igualdade, eu não podia dar minhas costas para sua humanidade.

Quão psicologicamente prejudicial foi essa política?
Em sua própria natureza, o DADT foi ambíguo e sua execução dependia das atitudes e percepções de comandos individuais, assim como das atitudes e percepções dos membros alistados. Mesmo que o DADT visasse proteger os soldados LGBT, proibindo esforços para perguntar suas identidades sexuais.

Caça às bruxas era algo comum nos anos 80, porque o exército tinha sofrido um enxugamento, e muitas pessoas LGBT foram caçadas, seguidas, investigadas, interrogadas e dispensadas junto com viciados, criminosos e perpetradores de violência doméstica. Os efeitos do abuso psicológico e sexual dessa caça às bruxas foram psicologicamente prejudiciais.

Vincent Cianni
Travis Jackson
Travis Jackson

As pessoas se sentiram aliviadas depois de poderem contar sua história?
Em muitos casos, as pessoas que entrevistei e fotografei não tiveram recurso em suas dispensas. Em certos casos, seu registro inteiro de serviço no exército foi expurgado, como se nunca tivesse acontecido. Participar do projeto serviu para reganhar a dignidade deles e sua história de serviço. Durante as entrevistas eles revisitavam experiências difíceis, às vezes experiências que já tinham esquecido. Foi uma catarse emocional para muitos deles. As fotos evocam sua humanidade, suas forças e suas fraquezas.

Como eles se sentiram servindo uma instituição que negava sua aceitação?
As razões deles para se juntar ao exército eram muitas, assim como a de seus colegas heterossexuais. Era uma honra servir seu país. Nas palavras de Joseph Rocha [um oficial da Marinha Americana entrevistado por Cianni]: "Isso nunca manchou meu amor pelo exército, pelas forças armadas, pelo serviço, pelos colegas. Era só o lugar errado na hora errada. As pessoas pensam 'É só não ser gay, não me deixe saber que você é gay', mas isso me tira a possibilidade de ter a foto de quem amo na minha mesa ou falar sobre nosso aniversário, ou ter um aspecto humano da minha vida. Esse tipo de negação e dualidade são horríveis".

Que histórias em particular ficaram na sua cabeça?
Pessoas como Kevin Brannaman - que foi estuprado por seu sargento - e Travis Dobbs - também estuprado por seu sargento e interrogado por três dias - que sofreram atos de violência sexual horríveis e degradantes e, para Dobbs, as medidas extremas de questionamento resultaram em crises psicológicas e emocionais. Rocha sofreu uma perseguição contínua e abusos de direitos humanos enquanto servia, incluindo "ser forçado a simular sexo gay em frente a câmeras várias vezes com cães do exército na sala, ser molhado com uma mangueira, ser amarrado a uma cadeira, ser deixado num canil com fezes e ser forçado a comer comida de cachorro".

Você sabe qual a situação atual para pessoas transgênero que querem servir o Exército nos EUA?
Toda a informação que recebi sobre a nova política militar é descrita como "LGB". Pessoas transgênero ainda não têm o reconhecimento para servir abertamente. Se alguém se assumir transgênero ou for suspeito de ser transgênero no exército hoje, essa pessoa é dispensada.

Você lembra de alguma história sobre como os gays se mantinham positivos enquanto serviam?
Muitos dos soldados e veteranos simplesmente se focavam no trabalho e na missão de sua unidade. Eles também se voltavam para seus amigos, família e, às vezes, sua fé, já que não podiam contar para seus colegas ou comandantes, nem tinha acesso a serviços de apoio ou aconselhamento espiritual.

Katie Miller [ex-cadete] colocou isso de forma muito bonita: "Ver meus ex-camaradas reagirem de maneira tão forte a mim foi devastador, mas deixar as pessoas com quem eu realmente me importava e que me deram apoio foi mais devastador ainda".

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Joanna Gasca:
Joanna Gasca: "Quando o 'Don't Ask, Don't Tell' foi derrubado, senti como se um peso tivesse sido tirado dos meus ombros. Eu brincava com a minha família que ia precisar de aconselhamento depois que me aposentasse porque não precisaria mais ficar no armário. Estou começando a sentir todos os anos em que não fui eu mesma vindo à minha cabeça. Às vezes as lágrimas começam a cair e eu não consigo pará-las."
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Greer Puckett:
Greer Puckett: "Eu estava no comando de 30 jovens marinheiros. Mais tarde naquele verão, um marinheiro disse que tinha ouvido um rumor de que eu era gay. Eu disse: 'Não sei o que você ouviu. Não importa o que você ouviu. Espero que você faça seu serviço de acordo com os regulamentos da Marinha'. Eu não ia ser provocado por um jovem marujo qualquer."
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Will Chandlee:
Will Chandlee: "Tive um relacionamento com um tenente da Marinha do Arkansas. Ele era muito bom de cama. Eu o levei para conhecer meus pais. Uma vez em que ele estava ficando com a gente no interior, ele me disse que ia se casar; era uma garota que ele conhecia desde criança. Isso me perturbou; foi muito inesperado."
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Denny Meyer:
Denny Meyer: "Em 1968, todo mundo estava no armário, dentro ou fora do exército. Se você fosse descoberto, seus colegas de tripulação te jogariam no mar pelo princípio geral. Se sobrevivesse, você era dispensado desonrosamente. Você ficava arruinado porque, naquela época, ninguém conseguia trabalho com esse tipo de dispensa."
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Zachary Werth (direita):
Zachary Werth (direita): "Eu estava saindo com o Dustin e tinha medo porque eu era nosso provedor. É algo que dei duro para alcançar - minha patente, minhas medalhas. Eu os odeio pelo que eles fizeram. Não entendo como eles puderam fazer isso. Eu esperava que meu serviço tivesse importado para alguém."
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Heather Davis:
Heather Davis: "A pessoa com quem eu estava namorando era mais velha que eu e estava há mais tempo no exército. Ela tinha crescido sob o antigo regime, onde havia caças às bruxas ativas para pegar gays no ato e expulsá-los. Aprendi essa cultura e vivi aterrorizada todo o tempo em que servi."

Tradução: Marina Schnoor


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