Folha de S. Paulo


Festival de Parintins transforma cidade em show de cultura amazônica

"Estou indo para Paris", costumam dizer orgulhosos os manauaras e moradores das comunidades amazônicas vizinhas quando enfim chega o final de junho e é hora de tomar o rumo para Parintins -por barco, em 99,9% dos casos, ou por avião.

O gracejo procede. Afinal, a cidade à margem direita do Amazonas, 370 km a jusante de Manaus, é, como disse Hemingway sobre a capital gaulesa, uma verdadeira festa. Aqui, uma festa a céu aberto.

Desde 1965 acontece oficialmente, no último fim de semana de junho, o Festival Folclórico de Parintins.

Mas a brincadeira que adaptou para a Amazônia a história do boi-bumbá trazida do Maranhão e arredores existe há muito mais tempo do que esses parcos 52 anos seriam capazes de traduzir.

Nos três dias do festival, a população de Parintins, de 112 mil pessoas, na ilha de Tupinambarana, quase dobra. Dividida, mas não excludente, a cidade ferve. De um lado os azuis do Caprichoso. Do outro os vermelhos garantidos. As ruas dissolvem, porém, na prática, quaisquer teorias de distanciamento.

Em três noites de festa, a reportagem não viu sequer um entrevero entre azuis e encarnados. E catalisadores para a confusão não faltaram. O volume de cerveja consumido por aqui nessa época, por exemplo, daria para encher outro rio Amazonas.

No palco alternativo em frente ao "reduto burguês" do bar do Verçosa, o guitarrista vermelho garantido só consegue manter seu ritmo graças à marcação do atabaque do percussionista azul caprichoso. Debaixo de uma tempestade equatorial, pois o parintinense "não é tapioca, não se desmancha com a água", garantidos se esgoelam cantando toadas caprichosas. E vice-versa. E vice-versa. E vice-versa.

Imagine um palmeirense cantando na chuva abraçado a um corintiano no dia da final do campeonato. Ou um flamenguista a um vascaíno. Aqui isso existe.

Nas calçadas, vendedores de bodó assado (peixe típico) e de tacacá quase não têm tempo de conversar com os famintos clientes ordenadamente enfileirados. Enquanto enche uma cuia com os camarões, a goma, o tucupi e o jambu de seu tacacá, Maya Carvalho conta à reportagem que exerce essa profissão há 40 anos. "Foi minha sogra que passou essa riqueza para nós", diz ao lado do marido, que faz as vezes de caixa.

Normalmente ela vende cerca de 30 cuias por dia, a R$ 10. Na época do festival são 150 cuias por dia, oferecidas entre as 15h e as 18h.

A tradição local reza que só se pode oferecer a iguaria após as 15h. Dona Maya respeita as tradições, mas diz que pretende mudar essa.

CAMINHO DAS ÁGUAS

Estradas não há. O avião é caro. Ou seja...

O casal manauara Nei, 28, e Dorilene, 36, desembolsou R$ 320 por viagem e dormida via fluvial. Saiu de Manaus na quinta (29) ao meio-dia, a bordo do Anna Karoline II.

Chegou a Parintins acompanhado por outros 426 passageiros na tarde de sexta. Na semana anterior, o Anna Karoline II já saíra lotado de Manaus. Trouxera em seu bojo três centenas de modernos mascates, com suas camisetas, seus colares, artesanatos, cervejas e carrinhos de churrasquinho, entre outras bugigangas. Tudo para ser vendido durante o festival.

Nei e Dorilene, casal caprichoso, fazem o mesmo percurso há cinco anos. Encaram a descida do Amazonas por 24 horas, vão ao Bumbódromo por uma noite e nas outras ficam zoando pela cidade. Dormem as três noites do festival numa rede no barco que os trouxe.

Na primeira noite, ficaram três horas na fila para conseguir entrar na arquibancada do Bumbódromo, onde o acesso é gratuito. Pouco se comparadas às 12 horas de fila que costumam enfrentar os que querem uma melhor posição na arena. O casal diz que voltará em 2018 para ver o bi da sua agremiação.

A COR DO CHIFRE

"Só não pede chope o vizinho, que já morreu!" "Vamos beber! Qual é a cor do seu chifre?" Em frente ao muro que margeia o cemitério, atrás da catedral do Carmo, bem ao lado de um furgão que vende chope azul ou vermelho, o folião anima os que seguem rumo ao Bumbódromo.

Uns não querem gastar com ingressos. Outros não têm paciência para ficar na fila e entrar de graça. Os terceiros só querem mesmo aquilo, diversão na rua. A avenida Clarindo Chaves, que brota no rio Amazonas e deságua no Bumbódromo, transforma-se então num espetáculo à parte.

Moradores instalam TVs em suas garagens para que o público assista à disputa entre os bois na arena e aproveitam para vender cerveja e petiscos. A rua fica lotada.

Até o vigia do cemitério, do lado de dentro do campo santo, espicha o pescoço por detrás do muro para ver o furdunço. George, o dono do chopptruck que veio de Manaus, não está muito contente com suas vendas. "Cinco reais por um copo de chope é um pouco caro para cá", lamenta-se. Pudera, na cidade ribeirinha fundada em 1796 a concorrência vende um litro de cerveja por até R$ 6.

Na segunda-feira (3), já no aeroporto local, antes de embarcar para Manaus, a reportagem ouviu o resultado do festival: Caprichoso campeão. Venceu as três noites.

Alda Ferraz, garantida roxa, que acabara de desembarcar vinda da capital amazonense, estava inconsolável... e muito brava. "Péssimo, odiei, é injusto! O Garantido foi melhor nas duas primeiras noites. Como pode?".
A seu lado, no saguão, um militar reformado da Aeronáutica sapateava sem parar e beijava seu tênis todo azul. "Caprichoosooo!!!".

Alda leva na brincadeira, mas avisa que os "contrários" não perdem por esperar. "Em 364 dias vão ter o troco".

O jornalista viajou a convite da organização do Festival de Parintins


Endereço da página:

Links no texto: