Folha de S. Paulo


Eremitas e templos antigos se escondem em vale no Líbano

No vale de Qadisha, no Líbano, é fácil esquecer que estamos a menos de 30 quilômetros do drama sírio, nas entranhas de um Oriente Médio envolto com o sangue do extremismo islâmico.

Turistas e peregrinos percorrem despreocupados os caminhos de um território que é visto por muitos libaneses como sagrado. Nesse cânion, ao abrigo de suas montanhas escarpadas, os cristãos maronitas cresceram e prosperaram durante séculos e se fixaram há tempos como fronteira entre Oriente e Ocidente.

A melhor maneira de conhecer o vale e seus incontáveis mosteiros ocultos é fazendo trekking.

Uma das rotas mais famosas começa no mosteiro de Mar Antonios (santo Antônio), fundado no século 4 e restaurado recentemente. É o mais próximo a Bsharri, a capital da comarca, e o único acessível de carro.

Na caverna dedicada ao santo, com paredes enegrecidas por séculos de rituais religiosos, estende-se uma coleção de dezenas de potes e panelas de todos os tipos e tamanhos colocados de boca para baixo. "Foram deixados por mulheres que têm dificuldade em engravidar", diz uma mulher trajando roupa esportiva. Com seus filhos correndo pelo recinto, ela apenas acende uma vela.

Num prédio adjacente à capela principal, onde está sendo rezada uma missa que combina o árabe com o idioma siríaco —aparentado com o aramaico—, há um museu que guarda um artefato importante. É o primeiro prelo do Oriente Médio, comprado em 1584 pelo bispo maronita Sarkis al Razi, em Roma, para imprimir um livro de salmos na língua.

Embora siga o rito oriental, a Igreja maronita se uniu à católica no século 11 e reconhece a santidade do pontífice do Vaticano.

COLOMBIANO
A segunda etapa da caminhada, de umas cinco horas de duração, termina no santuário de Nossa Senhora de Hawka, escavado da rocha.

A trilha que leva ao santuário é íngreme e estreita, não apropriada para idosos. No santuário vive Darío Escobar, um monge colombiano de 83 anos e barba grisalha muito longa. Seu hábito austero forma um contraste com as coloridas roupas de grife e os penteados hipsters de um grupo de visitantes jovens.

Escobar não parece se incomodar por sua paz ter sido perturbada e recebe os visitantes com bom humor. "Venho da Colômbia, o país da boa cocaína", ele explica, em um árabe libanês castiço, abrindo um sorriso cúmplice.

A trajetória do último eremita cristão do vale de Qadisha não deve ter muitas semelhanças com seus antecessores. Antes de dedicar-se à vida contemplativa e de mudar de rito cristão com a autorização do Vaticano, Escobar viveu nos Estados Unidos e na Espanha, onde foi professor de psicologia e teologia. Mesmo assim, sua vida obedece à mesma rotina de seus antecessores: jornadas de oração de 14 horas e uma vida sem conforto, tendo uma pedra lisa por travesseiro em sua moradia úmida.

"Faz 16 anos que vivo aqui. Como só uma vez por dia, e a dieta é sempre a mesma: verduras cozidas que colho de minha própria horta", ele revela, recordando a proibição total do consumo de carne.

Escobar não tem telefone, rádio nem televisão. E menos ainda internet, é claro. Seu único meio de comunicação com o mundo externo é um walkie-talkie para emergências, além das notícias que seus visitantes transmitem. Ele sempre pergunta aos turistas sobre os resultados mais recentes de seu time do coração: o Barcelona.

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CEDRO

Os montes do acidentado Qadisha guardam outro tesouro: a maior reserva de cedros do Líbano.

A árvore, símbolo do país, corre perigo de extinção. O passeio pelo parque nacional de Tannurin, que leva duas horas, é o menos cansativo do fim de semana. Nada menos que 60 mil árvores estão conservadas no local, algumas quase milenares.

O espaço existe graças ao interesse renovado dos libaneses por uma árvore que, nos tempos bíblicos, recobria todas as montanhas da região.

O cedro está tão intimamente associado à imagem do país que os fundadores do Líbano não hesitaram em colocá-lo ao centro da bandeira nacional. A madeira é de qualidade excelente, e por isso as diversas civilizações que ocuparam essas terras se serviram dela até quase deixar os montes pelados.

O templo de Salomão teria sido construído em parte com cedros do Líbano, e as embarcações das civilizações fenícia e egípcia, também.

Os últimos a fazer uso da madeira foram os otomanos, na construção da linha de trem entre Istambul e Meca. Para frear a sangria de cedro, o patriarca maronita, dois séculos atrás, decretou que qualquer pessoa que derrubasse uma dessas árvores seria excomungada.

Graças ao patrocínio do magnata mexicano Carlos Slim, de origem libanesa, nos últimos dez anos foram plantadas mais de 40 mil mudas de cedro. Por meio da associação "Cedre du Liban" é possível financiar o plantio de um cedro a partir de qualquer lugar do mundo.

MOSTEIRO

A uma hora da morada do monge Darío Escobar, encontram-se os mosteiros de Qanubin e Santo Elias, bem próximos um do outro.

O primeiro, uma construção simples erguida sobre a rocha, foi fundado no ano 375 e foi a sede do patriarcado maronita entre os séculos 5 e 19. Em sua capela há dois afrescos centenários desenhados sobre a pedra. Numa sala anexa, está uma múmia, bem conservada, de um patriarca do século 17.

Já o mosteiro de Santo Elias é fruto de um trabalho maior de engenharia.

Mais exposto a ataques, devido à localização perto do ponto de maior profundidade do vale, o mosteiro foi projetado como uma fortaleza oculta na encosta, com porta de apenas um metro e meio e um labirinto de galerias e corredores secretos.

Conta o guia que, com dezenas de monges aguerridos vivendo no local, o mosteiro era realmente difícil de ser conquistado.

A história dos maronitas é repleta de perseguições, primeiro por parte de outras confissões cristãs que os viam como hereges e, mais tarde, de muçulmanos e drusos, sendo estes últimos uma cisão do islã.

Uma das vantagens de viajar pelo Líbano é que, depois de um dia de caminhadas e mudanças bruscas de temperatura, o visitante sabe que um bom jantar sempre o aguarda.

A gastronomia libanesa é reconhecida como uma das melhores da região. Seus restaurantes fazem sucesso não só no Cairo ou em Bagdá mas também em São Paulo, Barcelona e Nova York.

No terraço do hotel Chbat de Bsharri, de onde o turista pode se deleitar com uma vista do cânion, abrimos o apetite com uma suave sopa de lentilhas. Ela é seguida pelo "mezze", uma combinação de salgadinhos típicos libaneses.

MUSEU

Antes de deixar a região, vale visitar o museu de Khalil Gibran (1883-1931), o poeta libanês mais célebre ao nível internacional. Nascido e sepultado em Bsharri, Gibran é motivo de orgulho dos habitantes da pequena cidade.

No centro, ao lado de uma praça, estão as ruínas da casa humilde, de apenas 40 metros quadrados, onde Gibran nasceu. Como era pouco apropriada para abrigar o museu, as autoridades decidiram erguer uma nova construção nos arredores da cidade, perto da gruta dedicada à virgem de Lourdes.

O som de um riacho próximo inspira o visitante a reler a obra do autor de "O Profeta". Além de várias primeiras edições de sua obra, a maioria em inglês, o museu reúne a cama de Gibran, seu criado-mudo e vários de seus quadros, que mostram as paisagens imponentes do vale de Qadisha, que tanto amava.

Gibran deixou o Líbano ainda criança, em 1854, seguindo o mesmo caminho do exílio de milhares de seus compatriotas, mas sempre conservou sua terra natal no coração, com uma nostalgia que impregnou seus versos.
Caminhando pelos arredores de Bsharri, com seus caminhos e ruas cheios de incontáveis cruzes de madeira e nichos com figuras de Nossa Senhora em seu interior, percebe-se uma espiritualidade tão poderosa como a que exala a obra do poeta.

O museu fica no sopé da montanha mais elevada do Líbano, a Kornet Sauba, com quase 3.000 metros de altitude. É o lugar ideal para assistir ao pôr do sol. Enquanto ao longe o astro vai lentamente se fundindo com o mar, a cordilheira se tinge de uma cor rósea, pontilhada por casinhas e igrejas suspensas à beira do precipício.

Tradução de CLARA ALLAIN

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Evento

A Associação Cultural Brasil-Líbano realiza, no próximo dia 19, às 20h, evento para celebrar a cultura libanesa no Theatro Municipal de São Paulo.

Acontecerão apresentações das cantoras Julianne Daud e Guiomar Milan Chediak e do alaudista Sami Bordokan, entre outras atrações. A entrada é gratuita, mas a organização pede alimentos não perecíveis para doação a refugiados.

A associação também promove uma mostra fotográfica com paisagens do país. A exposição fica no Reserva Cultural (av. Paulista, 900) até 27/6; mais em libanbylody.com.br..


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