Folha de S. Paulo


Repórter relata sua viagem de 5.000 km em veleiro de Ushuaia ao Guarujá

Não é simples ter a dimensão de um desafio. Bastou o veleiro Endurance deixar o cais do clube náutico de Ushuaia, no extremo sul da Argentina, para que eu percebesse o tamanho da empreitada na qual tinha me metido.

Deslizar pelo canal de Beagle, com as montanhas nevadas pela primeira vez no ano emoldurando o nado de baleias e golfinhos, era o começo de um sonho. Foram quase 5.000 quilômetros sacolejando pelas águas nervosas do início do outono no Atlântico Sul até o município de Guarujá, no litoral paulista.

Dois de abril de 2016: o dia em que começou a mudar tudo o que eu entendia por imprevisibilidade, risco e natureza bruta.

Ao tirar férias num veleiro de 65 pés (20 metros) de comprimento entreguei-me ao imponderável. A missão do barco era retornar ao Brasil para manutenção após uma temporada operando pequenas rotas de fretamento pelos canais chilenos e o cabo Horn. Esse tipo de travessia, conhecida como "delivery", não costuma ser recomendada a velejadores de primeira viagem.

Estavam a bordo dez pessoas, sendo quatro tripulantes e seis passageiros -a maior parte deles inexperientes. Em comum, todos souberam da expedição por meio de um anúncio no fórum Velejadores de Oceano, numa rede social. Por US$ 1.600 (R$ 5.093) estavam incluídas as refeições e a acomodação a bordo pela duração estimada de 15 dias. A viagem durou bem mais, mas o valor não mudou.

Pinguins-de-magalhães, leões-marinhos e baleias-de-bryde apareceram já nas primeiras horas de navegação no canal de Beagle, juntamente com bandos de biguás e gaivotas.

Com o cair da noite, a temperatura despencou e saíamos de águas abrigadas para o mar aberto.

Na confluência entre a península Mitre (última pontinha continental a leste da América do Sul) e a Ilha dos Estados fomos atingidos por ondas de cinco metros pela proa e por boreste (lado direito).

O barco não só chacoalhava como se nunca fosse parar, mas era lavado pela água.

Dos dez a bordo, sete passavam mal e disputavam espaço nos fundos, área menos instável.

Após o segundo dia, o plano era pernoitar duas noites na baía de San Sebastian. Uma tempestade com ventos de 100 km/h passaria pelo estreito de Magalhães -poucas horas ao norte. Bem que tentamos escapar da baía, mas a tempestade se delongou.

Após enfrentarmos duras condições, com banhos de água gelada em mar aberto, tivemos de retornar e ficar mais três noites. Não sem antes descobrir, com o casco a apenas 60 centímetros do fundo repleto de lodo, estarmos ancorados num dos pontos com maior variação de maré de todo o planeta.

"Vamos afundar se não sairmos daqui", disse o capitão. Obedecemos com rapidez ao comando e conseguimos restabelecer um novo ponto de ancoragem. Adrenalina sob um céu imenso e cintilante. E esses foram só os primeiros dos 28 dias da jornada até atracar em Guarujá.


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