Folha de S. Paulo


Alter do Chão, no Pará, leva vida de cidade praiana longe do mar

Mesmo longe do mar, num canto remoto da selva amazônica, Alter do Chão (PA) merece ser classificada como uma das mais atraentes cidades de praia do planeta.

As praias de areia branca ao longo do rio Tapajós atraem visitantes que vêm de carro de lugares distantes. As águas claras e quentes atraem mergulhadores e praticantes de paddle boarding.

Você quer só descansar? Acomode-se, tome uma cerveja Tijuca gelada e contemple o pôr do sol sobre as montanhas cobertas de florestas e repletas de animais como preguiças e bugios.

Em uma viagem de trabalho à Bacia Amazônica, meses atrás, escapei por alguns dias para Alter do Chão. Em um país com mais de 7.000 km de costa, fiquei imaginando se uma das melhores praias brasileiras podia mesmo estar localizada no interior selvagem da maior floresta tropical do planeta.

"Se você quiser experimentar a verdadeira Alter, precisa comer formigas", explicou Pitó, 55, um índio cumaruara que guia turistas em excursões pela selva. Ele apanhou uma saúva no chão da floresta e me desafiou a comê-la. Crocante como pipoca, a formiga era deliciosa, com um toque de capim-limão.

Eu não podia ter pedido guia melhor que Pitó, cujo nome completo é Raimundo Gilmar Faria da Costa. Em algumas horas, ele me ensinou a caçar com arco e flecha, navegar de canoa, pescar com um arpão, extrair látex de uma seringueira e até mesmo a falar algumas palavras em nheengatu, a língua franca dos indígenas que persiste há séculos em toda a Amazônia.

"Aposto que você não faz nada disso em Ipanema", brincou Pitó sobre a lendária praia do Rio, a cidade onde moro há seis anos.

E Pitó estava certo. Para uma experiência singular de praia no Brasil, é preciso viajar a Alter, que parece um oásis vagaroso de tranquilidade em um país tenso por conta de uma prolongada crise econômica, escândalos de corrupção colossais e crescente polarização política.

Alter nem sempre foi vista como uma cidade de praia no meio da selva. Pedro Teixeira, explorador português que comandou expedições na Amazônia com o objetivo de escravizar os indígenas, estabeleceu um entreposto colonial no local em 1626.

Mas por séculos Alter se manteve isolada, atraindo apenas moradores da cidade de Santarém, que é próxima, e ocasionais aventureiros.

O naturalista britânico Henry Walter Bates (1825-1892) visitou a área nos anos 1850 e a descreveu como "um lugar negligenciado, devastado pela pobreza". "As casas da aldeia estão infestadas de animais daninhos; morcegos nos telhados de palha, formigas de fogo sob os assoalhos; baratas e aranhas nas paredes", escreveu.

A despeito dessas preocupações, Bates começou a gostar do lugar; as praias de Alter o ajudavam a refletir, depois de dias de pesquisa na selva ao redor sobre o mimetismo animal, com resultados que ajudaram a sustentar a teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882).

"A luz suave e pálida", escreveu Bates em "The Naturalist on the River Amazons", "pousando sobre as largas praias arenosas e os barracões com telhados de palha, reproduz o efeito de uma cena de inverno no gélido norte, quando uma camada de neve recobre a paisagem".

Inverno não foi a primeira coisa em que pensei ao percorrer a pé as ruas ensolaradas de Alter. No calor, as pessoas usam a mesma moda de praia que prevalece no Rio, de biquínis a calções largos.

A praça arborizada é um lugar acolhedor, com vendedores oferecendo travessas de açaí acompanhada por tapioca. Nos restaurantes, os visitantes saboreavam pratos de peixes amazônicos como o pirarucu e o tucunaré.

"Aqui é pacífico e mágico, não se parece com de onde viemos", disse Alexis Álvarez, 29, tatuador venezuelano que se mudou para Alter recentemente com a mulher, professora, e com a filha de um ano, buscando refúgio no Brasil depois de sofrer com a escassez de comida e remédios causada pela crise econômica da Venezuela.

"Em Alter, nos sentimos em casa", disse Álvarez, explicando que ele e a mulher se sustentam vendendo as bijuterias que fazem. "Acho que estamos aqui para ficar".

O explorador e escritor Alex Shoumatoff ficou encantado com Alter quando a visitou em 1977, descrevendo-a como "o primeiro lugar que procuraria quando enfim desistir de tentar me encaixar no mundo moderno".

Mas as coisas mudam rápido na Amazônia. Com a conclusão da rodovia que atravessa a bacia do rio, Shoumatoff voltou em 1984 e encontrou Alter irreconhecível, com adolescentes "bebendo Coca-Cola, fazendo esqui aquático, circulando em jipes com santantônios, imitando Michael Jackson e ouvindo sua música em toca-fitas".

Onde fica Alter do Chão

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Insegurança é desafio

Nos finais de semana, Alter do Chão (PA) continua a lotar de visitantes entusiasmados vindos de Santarém. Alguns moradores da cidade, porém, se queixam de tensões crescentes entre os locais e os forasteiros.

Alguém me alertou a não pegar carona na trilha que acompanha o percurso das praias do destino, porque duas pessoas foram brutalmente assassinadas naquele lugar alguns anos atrás.

"No dia em que cheguei aqui, senti uma energia muito especial e não consegui mais ir embora", disse Marcelo Freitas Gananca, 49, que se mudou de São Paulo para Alter em 1998.

Gananca é dono da Araribá, uma loja que vende uma espantosa coleção de arte folclórica indígena, que inclui máscaras de guerra cerimoniais, tacapes, tambores e zarabatanas de seis metros de comprimento.

"Mas agora a cidade está em um ponto de inflexão crucial, que vai determinar em que direção seguirá", disse Gananca, citando desafios como a falta de um sistema de esgoto, tensões com os recém-chegados e a construção de acomodações novas e espalhafatosas que não refletem as origens de Alter.

Diante desses desafios, fiquei imaginando que cara o distrito teria em alguns anos.

Apesar de se queixarem da construção de casas de férias na cidade pelos chamados barões da soja do Estado do Mato Grosso, alguns moradores de Alter continuam a insistir que será possível criar um equilíbrio entre turismo e sustentabilidade.

"Talvez Alter do Chão seja um ponto de encontro onde possamos aprender uns com os outros", disse Pitó, o guia cumaruara que me acompanhou durante a viagem. "Será que o mundo não precisa de um lugar onde as pessoas possam desacelerar, colocar a mão na água e sentir o fluxo do rio?"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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