Folha de S. Paulo


Ponta da Lagoinha (RJ) é recorte de um mundo intocado pelo homem

Fui criada em meio a paisagens deslumbrantes. Meus quintais foram as praias do Leblon e de Ipanema, numa época de águas translúcidas, em que se nadava com cuidado para não esbarrar em uma arraia. A areia também era viva, cheia de bichinhos com os quais brincávamos, besouros, minhocas e tatuís. A palavra poluição não fazia parte de nosso dicionário.

Ainda hoje, em dias de semana, largo o que estou fazendo e fujo até o Arpoador para dar um mergulho. Muitas vezes me deparo com um mar transparente e morno, onde nado entre cardumes de peixinhos dourados. O paraíso ainda existe.

Mas, se não é segredo para ninguém a beleza das praias cariocas, hoje pensei em falar de um lugar mais distante, que para mim foi um achado. Um lugar quase secreto, de tamanho encanto que acabou se imiscuindo em um romance meu –e virou cenário. Um lugar onde se toma banho de mar, mas que nem praia é. Tanto, que tem lagoa no nome: a Ponta da Lagoinha, em Búzios.

Búzios, como todo mundo sabe, é um lugar lindo. Aquele pedaço de terra onde fica a cidade, com praias de mar aberto de um lado, e delicadas baías do outro traz sua fama de beleza há mais de 500 anos. Entre 1501 e 1502, logo depois da descoberta do Brasil, os portugueses fizeram uma expedição naval de reconhecimento ao litoral entre Cabo Frio e Búzios e deram à região o nome de Baía Formosa –o que diz tudo.

Mas a aldeia de Armação dos Búzios só surgiria no século 18, como colônia de pesca de baleia. Elas eram arpoadas de um lugar chamado ponta da Matadeira, depois arrastadas para a praia da Armação, onde eram esquartejadas. Seus esqueletos eram então jogados na praia ao lado –e assim surgiu a Praia dos Ossos, que um dia seria visitada por Brigitte Bardot.

Desde muito jovem, quando ainda não havia estrada entre Rio e Búzios, apenas uma picada de terra toda esburacada saindo de Cabo Frio, eu já frequentava a pequena aldeia. Um dia, descobri que Búzios e eu somos irmãs, porque a principal data comemorativa da cidade (o dia de Santana) é o dia do meu aniversário.

Na mesma ocasião, fiquei sabendo que aquela igreja no alto do morro junto à Praia dos Ossos –a capela de Nossa Senhora de Santana– tem duzentos e tantos anos (é de 1743). E foi essa sensação de estar pisando um lugar que tem história, talvez mais até do que a beleza de praias como Azeda, Geribá ou Ferradurinha, o que sempre me fascinou em Búzios.

Pois há poucos anos, quando eu pensava que já sabia tudo sobre a cidade, veio uma nova descoberta: a Ponta da Lagoinha. Aconteceu por acaso. Eu tinha saído, de carro, da pracinha atrás da Praia dos Ossos, e estava procurando o caminho para ir a algum lugar (já não sei qual). Nessa busca, enveredei por ruas e mais ruas de paralelepípedos, cheias de terrenos baldios, e me perdi numa região que depois soube se chamar Altos da Brava.

Subi e desci morros, tentando me orientar pelo mar e, quando já pensava em dar meia-volta e retornar à Praia dos Ossos, de repente me vi diante de um pequeno largo de terra batida, com uma placa. Parei o carro.

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Dali se abria uma picada, provavelmente indo dar no mar. Decidi saltar. Foi quando vi que estava diante de "uma preciosidade geológica". A placa explicava tudo: o sítio da Ponta da Lagoinha fora tombado a pedido do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural por ser "uma verdadeira amostra da história geológica e biológica da formação do continente americano, ocorrida há 500 milhões de anos". Fiquei surpresa. E, mais que surpresa, curiosa.

Desci a picada íngreme, em curva, com degraus escavados em alguns pontos, tomando cuidado para não escorregar. E logo descobri por que a placa falava em "preciosidade". A Ponta da Lagoinha é o recorte de um mundo ancestral, intocado pelo homem, uma paisagem que seria lunar se a lua tivesse água.

Estar ali é como ser transportado para um planeta perdido. Porque, entre a picada cortada na vegetação rala e o mar, lá embaixo, tudo o que se vê é água e pedra. No leito da formação geológica, a chuva fez uma piscina, que o mar alimenta quando a maré sobe, as ondas explodindo nas pedras, a espuma escoando e perturbando a paisagem antes imutável.

Olhei para aquela paisagem e guardei nas retinas cada detalhe, cada nuance de cor ou luz. Nunca mais esqueci. E foi assim que, de tão linda, a Ponta da Lagoinha saiu da geologia para entrar na história. Na minha história.

HELOISA SEIXAS é escritora; seu romance mais recente, "O Oitavo Selo" (Cosac Naify), tem a Ponta da Lagoinha como cenário


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