Folha de S. Paulo


Como jantar 4 vezes em 4 horas na noite louca de Tóquio

"Gentoroman!"

Com um olhar agradecido, ela diz "gentleman" com sotaque japonês. Trabalha sob os trilhos do metrô de Tóquio, aborda os homens que vagam pela noite louca do bairro de Shimbashi. Oferece "massádji" e "sékisu".

Toco em seu ombro: "Não, obrigado, hoje não. Já estou legal". Quase nada, mas o suficiente para ela me achar um cavalheiro: "Gentoroman!"

Eu poderia ter completado: "Sabe o que é, menina, hoje estou em outra. Minha última noite em Tóquio, já são quase dez da noite, não jantei ainda, e meu plano é comer até cair".

Shimbashi é um labirinto de casas de massagem, fliperamas, lojas baratas, e, principalmente, de centenas de restaurantes e botequins. Já fiquei outras vezes nessa região, mas passava a pé tangenciando o bairro.

Hoje, não. Por aqui não há estrelas Michelin, mas sobram movimento, diversidade, um universo gastronômico a ser explorado.

Primeira parada: um sushi em pé. Balcão onde cabem umas dez pessoas e é proibido sentar. Luz branca de lâmpadas fluorescentes, movimento frenético, comida barata. Existem muitos assim em Tóquio, mas normalmente abrem só no almoço. Este fica até altas horas.

A variedade é impressionante: peixes, moluscos, crustáceos de todas as regiões do Japão. Não é o melhor arroz de Tóquio, nem o sushi mais bem montado da cidade. Mas, na comparação, humilharia qualquer restaurante japonês de São Paulo, mesmo os mais estrelados.

Destaque para o sushi fresquíssimo de sanma (um primo bem maior da sardinha, que aqui no Brasil só chega congelado para fazer na grelha ou no forno).

Espíritos menos bravos já se dariam por satisfeitos, mas minha missão mal começou. Faz uns 18°C no agradável outono japonês. Os restaurantes abrem as portas, as janelas, as mesas nas calçadas estão cheias.

Opto por um dos mais arejados e entro às cegas. Não há cardápio em caracteres ocidentais nem ninguém que fale inglês. A especialidade são peixes na grelha, parece. Sei que está na temporada de sardinha, sapeco o pedido em japonês: "Iwashi, onegaishimasu" (sardinha, por favor).

A sardinha que me servem tem gosto de carvão e peixe, carne macia e suculenta. Não parece da mesma espécie –nem do mesmo planeta– das sardinhas que comemos em São Paulo. Batatinhas no espeto acompanham. Também um saquê bem seco, e "nama biru" (chope) em quantidade de perder a conta.

Tempo para uma terceira etapa? Claro! Às prostitutas da área, o "gentoroman" pede uma dica de um bom bar de espetinhos de frango. Só sei dizer "yakitori" (espetinhos de frango) e "oishii" (gostoso). Elas entendem e me levam a um lugar, mas já está fechado.

INTESTINO E 'ÓRGÃO'

Procuro mais, e chego ao pequeno bar de um casal bem jovem. Ela prepara, ele grelha. O balcão está vazio. Só uma mesa ocupada, por dois casais de hipsters. Contra toda a probabilidade, aparece um cardápio em inglês, escrito à mão, com esmero geométrico, pela dona do lugar.

O menu não é para fracos: fígado de porco mal passado, intestino delgado suíno, coração de porco, e um misterioso... "órgão". Só isso. Não perguntei o que era. Optei por frango, as partes mais convencionais. Mas o esquema realmente era tenso. Quando disse que queria "sassami" (filezinho), o rapaz perguntou: "Cru?"

Segue a noite. O horizonte já não é tão firme, o ar fica pastoso. Será que o hotel está mesmo para lá? Os trilhos do metrô são a referência, e é embaixo de um deles que enxergo, na reta final da noite, a palavra mágica, em letras latinas: "Okinawa".

O arquipélago do extremo sul do Japão tem uma culinária própria, e ainda dá tempo de experimentar alguma coisa. O garçom fantasiado de havaiano traz "umi-budo", a "uva do mar", vegetal que mais parece ova de peixe. Em cada esfera, um pequeno oceano que explode na boca. Ao lado, pepino amargo, goya, outra marca de Okinawa. E mais "nama biru", agora da marca Orion, minha favorita no Japão.

Já é alta madrugada, o voo de volta ao Brasil sai em poucas horas. O clima agora mais frio aguça o senso de direção. Já sei para onde fica o hotel. Estou satisfeito. Quatro jantares em quatro horas. Nem sempre é dura a vida de um "gentoroman".


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