Folha de S. Paulo


Buenos Aires é bom lugar para 'sumir', mas é impossível fugir dos brindes

– Vamos beber umas hoje à noite?

Eta danado! Não demoram a me descobrir. Eu, que vou para Buenos Aires para ficar enclausurado. Mesmo.

Quer escrever um livro de contos? Vá para Buenos Aires no fim do ano. Um romance? Um volume de poesias? Corra para Buenos Aires, querida.

Mas tem sempre um brasileiro em tudo que é La Boca. Putz-grila! Atrapalhando o fluxo lírico das coisas.

– Descobri um inferninho milongueiro.

Diz meu amigo, que é ator. E me convida para beber umas Quilmes. Sem saber que atrapalha, assim, o destino de meus personagens. Por que razão exatamente é que eu sumo de São Paulo? Para não responder a essas tentações. Bem mais agradáveis do que os caminhos da literatura.

E digo: é claro que vou.

E chegamos. Em um beco estreito lá para dentro do bairro de Palermo. Não me lembro do nome do inferno. Certo que não era o do Dante. Em uma mesa encostada reinava, sozinha e sem maquiagem, uma festejada drag do circuito paulistano. Sem saber, ela estava ajudando no meu romance. À época, fui a Buenos Aires para terminar de escrever minha primeira prosa longa, intitulada "Nossos Ossos".

Faz parte dos "ossos" do ofício, ora. Não deixa de ser um laboratório. Tento me convencer de que não estou me divertindo, mas trabalhando.

– O nome da travesti que criei é Estrela, sabia?

E faço cara de um escritor sério. Mas quem quer saber de ficção? A cidade ali toda à nossa espera. Eu não previa que aquele final de ano seria tão marcante. Reencontrei no mesmo bar dois queridos amigos brasileiros, o professor Ivan Marques e o editor Adilson Miguel. Sem contar o poeta e tradutor argentino Cristian De Nápoli. Meu projeto, a depender desses veteranos boêmios, teve de esperar. A vida é mais urgente. Melhor é a gente não se programar.

– Temos de passar juntos o Réveillon, temos de passar.

No meu juízo, romanticamente, achava que os primeiros raios do novo ano viriam, solitariamente, abençoar a este escritor contemporâneo. Melancólico, socado e desacompanhado que eu estava em um apartamento, próximo ao café e bar La Orquídea, onde escrevia sempre ao fim da tarde, todos os dias.

– Escritor que é bom respeita o acaso.

Diz o meu amigo ator e nos convida para passar a virada na casa de uma famosa atriz, casada com um famoso diretor argentino. Pegamos um trem. E nos vimos, à meia-noite em ponto, brindando com Angela Correa e o lendário Pino Solanas. Eu quis saber dele sobre os filmes "A Nuvem", "A Viagem", "A Resistência"...

– Não quero ir embora deste mundo sem deixar meu testemunho. Por isso faço os filmes que eu faço.

À casa, à beira do rio da Prata, ganhei uma nova amiga, Angela Correa. Enquanto os fogos pipocavam lá longe, no outro lado da margem, pelas bandas uruguaias, eu lhe falava de meu romance, me sentindo um tanto culpado, mas entusiasmado.

– Quem sabe você não faz a Estrela quando o livro virar filme?

"Nossos Ossos" foi finalmente escrito. E publicado pela Record em 2013. Logo em seguida, lançado na Argentina com tradução exatamente de Cristian De Nápoli para a editora Adriana Hidalgo.

A adaptação para o cinema, feita por Paulo Lins e pelo diretor Snir Wein, acabou de ter o roteiro premiado no Festival de Sundance. O elenco já está sendo sondado. Quero muito Angela, já disse ao diretor. E não pode faltar aquele meu amigo ator, Sidney Santiago. A quem eu espero encontrar neste final de ano de 2016.

Desta vez, irei preparado.

MARCELINO FREIRE é escritor e criador do festival paulistano Balada Literária

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Histórias de Ano-Novo


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