Folha de S. Paulo


Na Bahia, luxo é encontrar um delivery de camarão no Ano-Novo

Foi uma corrida contra o tempo, precedida de espera aflita. Na véspera, sentado na sombra de uma barraca montada entre o rio e o mar, tomando caipirinha e caldinho de sururu, o responsável pela ceia mandou alto pelo telefone: "É para 20 pessoas, então me vê dez quilos de camarão. Do bom, meu bom".

Entrega prometida para as 10h do dia 31 de dezembro, na casa que nos hospedava.

Estávamos no litoral norte da Bahia, na praia de Imbassaí –na estrada do Coco, que virou Linha Verde, mas que é a eterna Costa dos Coqueiros. Ali, onde a brisa contínua protege do calor, o mar é de um tom verde escuro, a areia vai variando conforme se anda, o céu é limpo.

Parecia incrível um serviço de entrega acionado por telefone funcionando no último dia do ano e oferecendo vários tipos de pescados. E era mesmo incrível.

Em vez de chegar às 10h do dia 31 na nossa casa, a encomenda chegou às 18h. A surpresa boa é que não vieram os dez quilos, exagero dos exageros, e sim a metade. "Era o que tinha", disse o entregador, com o sorriso mais simpático do Brasil, desarmando qualquer possibilidade de revolta dos consumidores. A surpresa chocante é que eles vieram inteiros, com cabeças e corpinhos intactos. "Ou eu trazia ou descascava."

Tínhamos acabado de chegar de um fim de tarde maravilhoso, depois do mergulho que supostamente deixara na água salgada a zica do ano velho. O atraso e o conteúdo do pacote fizeram sombra no projeto noturno. Mas a ideia de passar a virada sem comer mobilizou forças. Era preciso reverter o fracasso.

Sem combinar nada, foram se formando duas frentes. O maior grupo, que incluía o mais jovem hóspede, com seus 11 anos e um espírito de equipe notável, usava a técnica do palitinho para limpar os camarões –eficaz, porém demoradíssima.

Num outro canto da mesa, uma dupla ou um trio, não me lembro direito, evoluía com ótima produtividade, apesar de não usar ferramentas. O segredo, na sequência revelado, consistia em limpar um sim e um não, às vezes um sim e dois não, e jogar tudo junto na cuia dos descascados, sem cerimônia.

Descoberto o método, a indignação tomou conta do grupão do palitinho. Como assim? O grupinho não deu nenhuma justificativa. Seguiu bebericando sua cerveja, comendo castanha-de-caju, praticando o seu método.

Uma consulta ao relógio: 21h. O sistema rápido, uma espécie de limpeza por amostragem, era a única forma de conseguir atingir a meta.

Rapidamente, toda a mesa abraçou o procedimento. Íamos explicando e nos convencendo uns aos outros, com crescente volume de voz, das mil e umas vantagens de não limpar neuroticamente todos os camarões. Era óbvio!

Assim fomos ganhando escala. Ali pelas 23h, as vasilhas cheias foram entregues ao fogão, pilotado pelo autor da encomenda, sempre entusiasmado e fera no curry. Minutos antes dos rojões e da chuva de fogos, começamos a saborear o recém-nascido, delicioso e apimentadíssimo camarão enchantée, até hoje em nossos corações.

Tenho certeza que foi esse prato que me deu sorte o ano todo. Muita proteína e pouca frescura os bens da Bahia são.

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Histórias de Ano-Novo


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