Folha de S. Paulo


Passar o Ano-Novo com João de Deus revela o espírito do Réveillon

A ideia de passar o Réveillon de branco sempre me soou automática e sem sentido. Mas por anos nunca contestei essa tradição e até comparti da histeria coletiva de correr para uma praia incrível ou para uma montanha inesquecível no mesmo dia, na mesma hora e pela mesma razão que todo mundo.

O meu primeiro Ano-Novo real, em sua forma psicológica e espiritual (como reza a lenda e cantam os bêbados), aconteceu no ano passado, em Abadiânia, no interior maltratado de Goiás. Fui ao encontro de João de Deus, o guru e curandeiro mais incensado do Brasil depois de Paulo Coelho. Não para me curar do que eu jamais tive e espero morrer sem ter, mas justamente para fugir do óbvio depois de pular 7.000 ondas entre Rio, Trancoso e Tailândia.

Fui à procura de paz e silêncio, de um pouco de natureza em sua forma menos interrompida e de estar cercado por pessoas, senão simples em sua existência real, ao menos bem disfarçadas.

Foi um adeus ao ano velho, e um feliz Ano-Novo à moda tradicional –mas, ainda assim, com alguns parênteses pertinentes: tinha o branco da roupa e um borbulhante sem álcool que acompanhava a ceia oferecida pelo único restaurante que decidiu ficar aberto depois da meia-noite, quando meia cidade dormia depois de goles de água purificada oferecidas por João de Deus.

Aqui vale outro parêntese. A atriz Lucélia Santos estava na sala de reza criada pelo médium quando entrei lá. Quase saí correndo.

Sobre a mesa, uma cardápio adaptado às regras de João, ou seja, nada de ovos caipira ou pimenta –muito menos carnes de animais que ciscam para trás.

Mas bateu em mim um vazio gastroexistencial logo em 1º de janeiro, então parti em uma caravana informal rumo à Chapada dos Veadeiros, por uma estrada que talvez tenha sido recapeada pela última vez para a passagem de Shirley MacLaine pelo Estado –e lá se vão 25 anos.

Chegamos sedentos e famintos de uma temporada profana depois de uma breve e bem-vinda pausa sob os cuidados divinos de João.

Mesmo sabendo que Alto Paraíso, porta de entrada da Chapada, estaria um inferno de gente com cerveja na mão, Crocs no pé e som alto tocando em possantes com placas de um Brasil que rima com puta que pariu, havia algo dentro de mim que chamava para a festa, para a bagunça, para a mesma histeria coletiva que por anos me fez correr para uma praia incrível ou montanha inesquecível no mesmo dia, hora e pela mesma razão que todo mundo.

Entendi, finalmente, o espírito de Réveillon. Bastou ficar um ano sem. Ou quase.

HERMÉS GALVÃO é jornalista e autor do livro "Como Viajar Sozinho em Tempos de Crise" (Record)

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Histórias de Ano-Novo


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