Folha de S. Paulo


Da presença de sapos à falta de croissants, comissários contam histórias de voo

Ilustração de turismo

A brasileira Ludmila Pereira, 57, morava no Texas quando soube que a American Airlines estava recrutando comissários de bordo que falassem português. Movida por um desejo de viajar o mundo, ela resolveu, aos 32 anos, se arriscar na empreitada. "Eu queria ver o que existia do outro lado da montanha."

Desde então, ela já voou para vários países da Europa e das Américas –e mesmo quando só tem 24 horas em um destino faz questão de aproveitar. "A cada viagem, sinto que ganho uma coisinha a mais, e isso é um prazer que ninguém tira", conta.

Quito, no Equador, é uma das cidades para as quais mais gosta de voar. Os motivos são vários: as pessoas receptivas, a geografia da região –permeada por vales, montanhas, planaltos e vulcões– e a energia do lugar.

O "Turismo" pediu que dez desses profissionais indicassem seus destinos preferidos (leia mais aqui ).

Diferentemente de Ludmila, foi depois de uma viagem (ou várias delas) que o paulistano Tiago Caramuru, 29, decidiu se tornar comissário.

Ele conta que gastava "cada centavo" que tinha para colocar o pé na estrada e conhecer novos lugares. "Percebi, então, que eu precisava ser pago para viajar", conta.

Durante quatro anos, como comissário de uma companhia aérea árabe, ele teve a chance de visitar cerca de 60 países, principalmente na África e na Ásia (depois, acabou deixando a profissão).

PACIÊNCIA ASSERTIVA

Mais do que viajar, algo que faz parte da rotina desses profissionais é lidar com passageiros –por vezes, mal educados. Segundo os comissários ouvidos pela Folha, com eles é preciso ter "paciência assertiva" e, ao mesmo tempo, saber se impor.

"Ou você me respeita, ou vai ser desembarcado", já teve de dizer Liliane Aoyama, da Avianca (leia abaixo situações inusitadas presenciadas pelos comissários).

"Contra a má educação, nada melhor do que a boa educação. Quanto mais alto a pessoa falar, mais baixo fica meu tom de voz", afirma Carolina Campos, 28, da Azul.

Mas a maioria dos entrevistados afirma que o contato com os passageiros é uma das melhores partes de trabalhar em um avião. De certa maneira, eles tentam entender por que cada viajante reage de modo diferente às situações comuns de um voo.

"Na entrada, algumas pessoas colocam a mochila para proteger o peito, outras mudam o passo para entrar com o pé direito. Tudo isso é um indicativo de que a pessoa está com medo", exemplifica Mauro Matias, 50, na profissão há 30 anos.

Também há sacrifícios para esses profissionais. Faltar a eventos da família e dos amigos, por exemplo, é inevitável. Além disso, é comum reclamarem de inchaço nas pernas e nos pés, ressecamento de olhos, nariz e boca, e terem problemas com o fuso horário (o que prejudica o sono e a alimentação).

Hoje, Ludmila prefere fazer voos noturnos e dormir durante o dia, mas "virar" o relógio biológico não foi fácil. O jeito é saber se adaptar –até porque, a cada rota, tudo muda: a tripulação, os passageiros e aeronave. Sempre há uma próxima viagem.

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TARTARUGA A BORDO
Uma vez transportamos uma tartaruga marinha dentro de um aquário, na cabine. Como ela precisava de cuidados especiais, não podia ir no porão, como acontece com os outros bichos

Eugenia Correia (TAP)

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'ENGRAÇADINHOS'
Às vezes, a gente tem que se impor. Eu nunca precisei desembarcar um passageiro, mas alguns entram na aeronave bem engraçadinhos. Já vieram para cima de mim fazendo piadinha, falando do meu corpo. Eu tive que virar e falar: 'Ou você me respeita, ou vai ser desembarcado'. Depois ele ficou quietinho

Liliane Aoyama (Avianca)

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SOCO
Uma história louca que ouvi foi a de um passageiro que deu um soco na comissária. Ele tinha pânico de voar e, depois de ter feito a agressão, teve que ser amarrado no assento

Flavia Soares, que conversou com mais de 30 comissárias para o livro 'Os Destinos das Comissárias de Voo

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MIMADO
No café, cada passageiro recebia uma bandeja com um croissant. Um homem pediu um segundo salgado, mas normalmente há a quantidade certa para cada passageiro. Pedi para ele esperar um pouco e, caso sobrasse, eu daria mais um. O passageiro fez um escândalo no avião e uma reclamação formal, sobre a qual tive que dar explicações na sede da companhia

Tiago Caramuru (que trabalhou por quatro anos em uma companhia aérea árabe)

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SAPO GRUDADO
O avião já estava com as portas fechadas, íamos decolar, quando uma senhora, que parecia muito nervosa, me chamou. Tinha um sapo do tamanho de um celular grudado na janela dela. Do lado de dentro! Não faço ideia de como ele entrou no avião

Marly Soares (comissária de uma companhia brasileira)

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CASA COMIGO?
Estávamos indo a Fernando de Noronha e, durante o voo, um dos passageiros pediu a esposa em casamento. Ele conversou com a equipe de comissários e conseguimos fazer com que o comandante fizesse o anúncio, como uma surpresa para a noiva –que aceitou o pedido

Ana Andrade (Gol)

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CASA COMIGO 2?
Já tive um pedido de casamento a bordo. Pusemos o anel dentro de uma caixinha, na embalagem com o lanche

Eugenia Correia (TAP)

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EMERGÊNCIA
Passageiros avisaram que um homem estava passando muito mal, tendo uma convulsão. Fizemos o atendimento, mas ele ficou inconsciente. Havia um médico e uma enfermeira a bordo, que disseram que a situação era grave e que ele precisava ir ao hospital. Passei a informação para o comandante, que fez um pouso de emergência

Marly Soares

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GAROTINHO COM CÂNCER
Há três anos, em um voo para Teresina, uma família com um garoto, que devia ter uns nove anos, entrou na aeronave. O menino tinha câncer e sonhava em voar. Toda a equipe ficou comovida e, quando terminamos o serviço de bordo, mostramos toda a aeronave para ele.
Seus olhos brilhavam

Fabiana de Sá (TAM)

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ABRAÇO DE LUTO
Uma senhora embarcou no avião chorando muito. A mãe dela havia morrido e ela estava indo encontrar a família. Quando perguntei se podia fazer alguma coisa para ajudar, ela disse que só queria chegar logo ao destino. 'Tem mais uma coisa que eu posso fazer: te dar um abraço', falei. Nos abraçamos no
meio do corredor

Carolina Campos (Azul)

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ACIDENTE
Em um voo, entrou no avião um rapaz que tinha pulado em um açude e batido as costas em uma pedra. Ele tinha perdido os movimentos do tronco para baixo. Na hora de servir o café da manhã, ele me disse que não podia comer. 'Pode sim', falei e dei a comida para ele. Ser enfermeiro é parte do trabalho

Mauro Matias (comissário de uma companhia brasileira)


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