Folha de S. Paulo


Com hotel de 10 mil quartos, Meca coloca o passado em xeque

Divulgação
Projeção em 3D de como será o hotel Abraj Kudai, que terá 70 restaurantes nas suas 12 torres
Projeção em 3D de como será o hotel Abraj Kudai, que terá 70 restaurantes nas suas 12 torres

Quando a multidão que anualmente peregrina a Meca chegar à cidade sagrada em 2017, irá se deparar com as torres do Abraj Kudai, que a essa altura será o maior hotel do mundo, com 10 mil quartos e 70 restaurantes.

Não devem faltar hóspedes –cerca de 2 milhões de pessoas fazem esse ritual anualmente, incluindo moradores da Arábia Saudita. A peregrinação à Kaaba, no centro de Meca, é um pilar do islã.

A cidade sagrada é, por sua vez, reservada a muçulmanos. Não é permitida a entrada de seguidores de outras religiões, como cristãos. Há uma espécie de pedágio para controlar a entrada –ao viajante pode ser exigido, por exemplo, recitar um trecho do Corão.

A construção do Abraj Kudai foi anunciada como um projeto de luxo, com gastos equivalentes a R$ 11 bilhões. Serão 45 andares com 12 torres, estação de ônibus, shopping e quatro helipontos. Cinco dos andares serão reservados à família real saudita.

Outro megahotel que terá endereço na cidade é o Holiday Inn Makkah Abraaj Al Tayseer, com abertura prevista para o final deste ano. Será o maior Holiday Inn do mundo, com 5.154 habitações em cinco torres.

Meca tem sido endereço de diversas construções monumentais, como a Torre do Relógio, um dos edifícios mais altos do mundo. Esse surto de edificações, porém, tem lá seus adversários –por exemplo, os historiadores.

A Torre do Relógio foi erguida em cima de uma fortaleza do século 18. Segundo o jornal "The New York Times", a onda de construções transformou a casa de Khadija, primeira mulher do profeta Maomé, em banheiros.

A lista de locais históricos destruídos ou ameaçados é extensa, em Meca, em parte por uma abordagem específica da corrente religiosa seguida ali.

IDOLATRIA PROIBIDA

O Abraj Kudai está sendo financiado pelo Ministério das Finanças saudita. O projeto é da firma Dar al-Handasah, com escritório em Beirute.

O islã defendido pela Arábia Saudita desautoriza a "idolatria" a sítios arqueológicos, e condena a peregrinação a pontos ligados à vida do profeta Maomé.

O britânico Samie Kayani, que lidera uma equipe de restauração na cidade sagrada, considera que a onda de construções tem uma razão mais pragmática: hospedar as levas gigantescas de peregrinos. "O interesse da monarquia é construir rapidamente a infraestrutura. A história não tem prioridade", afirma ele à Folha.

"Há debate interno sobre a arquitetura", diz Kayani. "Mas é um lugar muito difícil de entender. O fluxo de pessoas ali não tem paralelo."

Ele afirma, no entanto, que há uma mudança gradual na perspectiva da monarquia em relação à herança histórica. O projeto de conservação capitaneado por Kayani, por exemplo, é financiado pela família real e pela família Bin Laden, influente no país.

"Eu sou crítico à urbanização rápida, mas há uma função. Não podemos esperar que o processo seja igual ao da Turquia ou ao do Irã. Há uma relação diferente com a história", diz Kayani.

A necessidade de hospedar visitantes não convence, porém, Ziauddin Sardar, autor de um importante livro sobre a cidade. "A cada novo hotel, diminui a espiritualidade. Hoje, Meca é um resort de férias", ele diz à Folha.

Segundo Sardar, a monarquia saudita incentiva a vinda de mais peregrinos, em viagens de menor duração, e planeja que esse ritual seja a principal fonte de renda do reino, quando o petróleo sumir. "Meca sempre foi uma cidade de mercadores. Mas o dinheiro tomou conta."


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