Folha de S. Paulo


Obras na América Latina 'perdem' vínculo com Eiffel

As pessoas aqui a chamam de Ponte de Ferro. É uma ponte graciosa sobre o rio Chili, passando sobre campos de alho e com o vulcão Misti erguendo-se à distância. Guias de viagens, guias turísticos e moradores da região: todos apontam com orgulho para a ponte, uma expressão fluente da Revolução Industrial, como sendo obra de Gustave Eiffel, o engenheiro francês do século 19 que construiu a Torre Eiffel e projetou o esqueleto de ferro da Estátua da Liberdade.

Só que ela não é. E muitas outras pontes e construções espalhadas pelo Peru e pelo resto da América do Sul que são atribuídas ao engenheiro francês tampouco são obra dele.

"Qualquer coisa feita de metal na América Latina as pessoas dizem que foi criada por Eiffel", disse Darci Gutiérrez, professora de arquitetura em Arequipa, a segunda maior cidade peruana. Ela passou anos desmentindo o que descreve como "o mito Eiffel".

Existe um grão de verdade no mito. Quando jovem, muito antes de ser celebrizado pela torre que criou para a Exposição Mundial de Paris em 1889, Gustave Eiffel comandou uma empresa de engenharia na França, projetando pontes e edifícios para clientes em todo o mundo e enviando a eles as estruturas em pedaços de ferro pré-fabricado, para serem montadas nos locais.

Banqueiros o incentivaram a procurar oportunidades no Peru, país que estava enriquecendo graças às exportações do fertilizante guano, mas que não possuía as fundições ou o know-how necessário para erguer construções de ferro modernas. Em 1871, Eiffel enviou um representante ao Peru.

Ele foi escolhido para realizar pelo menos duas obras no sul do país, que estava sendo reconstruído após o terremoto de 1868: uma igreja em Tacna e uma casa de Alfândega e píer em Arica, que hoje faz parte do Chile.

De acordo com o biógrafo francês de Eiffel, Bertrand Lemoine, o representante do engenheiro morreu em 1873. A empresa aparentemente não empreendeu mais projetos na América do Sul depois disso. Até esse ponto, a história é conhecida.

Mas o mito de Eiffel persiste em Arequipa, a despeito das evidências que o desmentem. Além disso, muitas pessoas aqui creem que Eiffel projetou e construiu uma estação ferroviária e o movimentado mercado de San Camilo. Um historiador da cidade, Eusebio Quiroz, diz que a atribuição "não tem qualquer base factual".

O desejo de atribuir construções e pontes a Eiffel pode ter sua origem numa tendência sul-americana de vincular a Europa, e a França em especial, à sofisticação e à modernidade, tendência que ganhou um reforço adicional após a Expo Mundial de Paris.

Com altas colunas de ferro sustentando um telhado de metal ondulado, o mercado de San Camilo foi, na realidade, construído por uma empresa local no século 20, muitos anos depois de Eiffel ter deixado sua empresa de engenharia. A estação ferroviária e a ponte são mais velhas, mas foram erguidas pelo empreendedor americano Henry Meiggs, que também construiu a Southern Railways, entre outras obras no Peru.

Hoje usada por carros em uma pista única, com passarelas de pedestres de cada lado, a ponte foi erguida por volta de 1870. É um entrelaçado de postes e estacas de ferro que hoje estão pintadas de azul. Seria fácil imaginá-la como obra do criador da Torre Eiffel, mas as palavras "Phoenix Iron Co. Philada" estão em sua base. A Phoenix era uma empresa da Pensilvânia especializada em pontes ferroviárias, e Philada é uma abreviação de Filadélfia.

Mesmo assim, muitos moradores de Arequipa optam por acreditar no mito de Eiffel. "Esta ponte foi erguida pelo criador da Torre Eiffel", disse o agricultor Lucio González, 60, cuja casinha de pedra fica perto da ponte.

A professora Gutiérrez disse que pesquisas colocaram em dúvida a suposta ligação de Gustave Eiffel com outras estruturas no Peru, no Chile, na Bolívia, na Venezuela e em outros países, incluindo a Casa de Ferro em Iquitos, na Amazônia peruana. "O sistema de construção é diferente", disse. "Basta olhar para essas obras para ver que não são de Eiffel."

Mesmo nos poucos casos em que o envolvimento de Eiffel não está em dúvida, a história pode ser tudo menos simples. No caso da igreja em Tacna, documentos e fotos mostram que Eiffel recebeu um contrato para construí-la, que colunas de ferro e outras peças chegaram e que dois campanários de pedra para a igreja foram construídos parcialmente.

Mas as obras pararam em 1879, quando irrompeu uma guerra entre o Peru e a Bolívia, por um lado, contra o Chile. Os chilenos tomaram Tacna e só a devolveram ao Peru em 1929. Quando as obras da igreja foram reiniciadas, na década de 1950, as plantas de Eiffel tinham sido perdidas ou esquecidas, e foi feito um novo projeto.

O Chile também tomou o porto de Arica e o conservou quando a fronteira com o Peru foi redesenhada. Aqui, disse Gutiérrez, documentos históricos mostram que a casa de Alfândega, feita de tijolos vermelhos e brancos e hoje usada como centro cultural, foi de fato projetada e construída pela empresa de Eiffel antes da guerra.

Mas Gutiérrez levantou dúvidas em relação ao marco arquitetônico mais aclamado da cidade, a igreja de San Marcos. Uma placa diz que a igreja foi construída por Eiffel em 1875. Gutiérrez encontrou documentos segundo os quais a igreja foi enviada dos Estados Unidos, em partes, e que um "mestre de obras" foi enviado para supervisionar sua montagem.

O arquiteto Patricio Letelier, 41, passando pela igreja de San Marcos numa tarde recente, disse que a construção incomum da igreja, feita inteiramente de ferro, faria dela uma construção importante com ou sem a associação com Gustave Eiffel.

Colaborou ANDREA ZARATE


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