Folha de S. Paulo


Livro sobre história de mulher que cortou Austrália a camelo vira filme

No final de "Tracks" [não publicado no Brasil], o livro de Robyn Davidson sobre sua jornada a camelo pelo deserto australiano, em 1977, a autora conclui que "viagens a camelo não começam ou terminam, elas apenas mudam de forma." Nos últimos oito meses, a viagem a levou ao tapete vermelho de Veneza, na Itália, e de Telluride, nos Estados Unidos, em vez de às areias de Pipalyatjara e Uluru. E os encontros alarmantes não foram com camelos bravos ou répteis, mas com toda a comoção que acompanha a promoção de um filme baseado na sua própria vida.

Matt Nettheim/Divulgação
Mia Wasikowska no papel de Robyn Davidson; os camelos foram sua companhia na travessia do deserto
Mia Wasikowska no papel de Robyn Davidson; os camelos foram sua companhia na travessia do deserto

Apesar de "Tracks" ter sido considerado uma espetacular obra de literatura de viagem, ele sempre foi muito mais que isso. Também é sobre o sexismo e o racismo - especificamente envolvendo indígenas australianos - que Robyn, então com 26 anos, encontrou no país, sobre alienação e sobre como nós mesmos nos limitamos por causa de medo e insegurança. "Homens são homens e as mulheres são para ser pensadas depois," ela escreveu sobre sua terra nativa. Os companheiros que zombaram da sua proposta de viagem eram "fanáticos e entediantes" e não é nenhuma surpresa que algumas das feministas mais ferozes do mundo tenham sido australianas ou neozelandesas. Desde a viagem, uma mulher foi primeira-ministra da Austrália, fato inédito no país. Numa conversa em um flat no leste de Londres, que ela certa vez chamou de casa, eu perguntei o que mudou desde então.

"Todo país tem suas próprias versões de sexismo e racismo e agora que eu viajei o mundo, vi o quando os homens têm dificuldade com as mulheres," diz Davidson. "Eu sou mais branda com relação aos australianos. Eles costumavam ser boa companhia - engraçados e autodepreciativos. Enfim, há bons e maus homens e boas e más mulheres. Quanto ao racismo, quando eu voltei para a Austrália pela primeira vez e assisti a "Sansão e Dalila" [filme de 2009 do diretor australiano de origem indígena Warwick Thornton], eu pensei: nada mudou. Mas então eu pensei melhor - naquela época não teria havido um cineasta aborígene."

Conheci Davidson há mais de 30 anos, por meio da fotógrafa Penny Tweedie, na época em que o livro foi lançado. Pouco tempo depois, Davidson já estava viajando de novo, atravessando os Estados Unidos numa Harley-Davidson com seu então parceiro, Steve Mark. Ela parecia incontrolável.

"Tracks" foi primeiramente cotado para virar filme nos anos 80 e passou pelas mãos de diversas produtoras. "Uma das ideias era fazer da personagem principal uma secretária americana tonta que recebe um cartão postal de um tio na Austrália. Ela está no Central Park com a mãe, que diz 'querida, você precisa seguir esse caminho' e então a mãe é atropelada por um ônibus," Davidson diz, rindo com a lembrança. "Nós costumávamos brincar dizendo que haveria marcas de pneus no rosto da mãe e então o título, "Tracks", apareceria na tela." Não é surpresa que essa versão não tenha dado certo. Também houve uma conversa sobre um filme de alto orçamento, estrelado por Julia Roberts, mas Davidson recusou a ideia.

"Eu via o projeto como um filme independente e achava que, uma vez que eu chegasse a Hollywood, meu controle sobre ele seria zero," ela diz. "Mas a produtora [Emile Sherman] e o diretor [John Curran] eram encantadores e eles eram uma pequena companhia na Austrália."

Mia Wasikowska, que interpreta Davidson, capturo-a assustadoramente bem. A presença da atriz, nascida na Austrália, facilitou a jornada por festivais e festas. "Eu sou fascinada por atores, por como eles fazem o que fazem, e é óbvio que essa jovem mulher é muito inteligente e tem uma forte vida interior - e nós nos divertimos juntas," disse Davidson. "Nós estávamos no tapete vermelho em Veneza - eu não tinha ideia de que eles realmente tinham tapetes vermelhos, eu pensava que era só uma expressão."

Agora ela está trabalhando em suas memórias, uma expedição por sua própria vida que tem sido adiada há quantos anos? "Quinze - vamos dizer que foram 10, soa mais respeitável." Anos atrás, Davidson escreveu um lindo ensaio para o Telegraph, em que explica por que seria incapaz de escrever um livro. Como alguém notou na época, aquele texto seria um perfeito primeiro capítulo, e agora será. Há alguns anos, o agente literário David Godwin voou para a Índia para convencê-la a terminar o livro.

As memórias são uma jornada na tristeza pessoal de Davidson, que começa em um rancho de gado em Queensland antes de chegar aos "selvagens anos 60 e 70". Depois da publicação de "Tracks", Davidson viveu em quatro continentes e teve mais de 40 endereços. No início dos anos 80, se mudou para Londres, morando primeiro com Doris Lessing e depois num flat, onde estamos agora. Um fazendeiro e ex-político indiano chamado Narendra Singh Bhati convenceu Davidson a ir para o oriente, o que a levou a mais uma jornada com nômades e camelos no noroeste da Índia, uma experiência difícil que se transformou em livro, Desert Places [Lugares Desertos, Companhia das Letras]. Apesar de Bathi ter morrido em 2010, ela ainda passa parte do ano na Índia e mantém uma próxima - e frequentemente enraivecida - relação com o país, exacerbada pelas atuais eleições. "Se Modi [do partido de direita Bharatiya Janata] ganhar, será um desastre. Eu o acho realmente terrível."

Por um tempo, Davidson ganhou a vida levando ricos, e algumas vezes exigentes, viajantes para o deserto de Rajasthan, na Índia. Isso daria um filme? "Teria de ser comédia. Você certamente descobre como grupos funcionam: todos ficam um pouco infantilizados, então, como guia, você inevitavelmente acaba sendo a mãe."

Ela agora tem uma nova casa perto de Melbourne, para onde irá quando os tapetes vermelhos forem enrolados, e vai encarar o prazo de entrega do livro de memórias. Algo claramente tão assustador para ela quanto as tempestades de areia, a grama espinhosa e o sol ardente da Austrália.

Matt Nettheim/Divulgação
Cena de
Cena de "Tracks"; personagem atravessa o deserto australiano em 1977

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