Folha de S. Paulo


Considerado amador, futebol feminino leva atletas da seleção a jogar sem salário

Erika Cristiano dos Santos, 25, sai mancando de campo no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, em Moema, zona sul de São Paulo.

O exercício agora é de disputa de bola. O auxiliar técnico a chuta com força e duas jogadoras saem rapidamente correndo do meio-campo para ver quem marca primeiro o gol.

A goleira Richelle Sonia, 17, descansa ao lado da trave, enquanto outro auxiliar assume o gol momentaneamente. Neste treino, ela é a única da posição desde que a colega Thaís Picarte foi convocada para a seleção brasileira no início do ano, com mais oito jogadoras do time.

Mas, hoje, Erika não pode com os exercícios de tiro. Sentada no banco, observa as colegas da equipe feminina do Centro Olímpico. Balança a cabeça, incentiva as jogadoras de longe --"boa, Gabizinha!"-- enquanto segura um saco de gelo sobre a perna contundida.

Um mês atrás, a atleta, que já tinha três ligamentos rompidos, estourou o quarto, no tornozelo. "Daqui uma semana já estou de volta".

Erika começou jogar bola com cinco anos, pelas ruas de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo. Aos sete, entrou em uma escolinha de futebol. "Para ir aos treinos, eu passava por baixo da catraca do ônibus, arrastando a cabeça no chão, pois não tinha dinheiro. O motorista já sabia e guardava um lugar para mim; e eu ia, comendo minha marmitinha."

Em 2003, foi chamada para jogar na equipe feminina do Juventus, hoje extinta. Durante um ano e meio, Erika representou o clube da Mooca. Neste período, teve a primeira de uma carreira de convocações para a seleção brasileira.

A partir de 2005, vestiu outra camisa de peso, a do Santos Futebol Clube. Em janeiro de 2012, porém, o clube da Vila Belmiro também fechou seu elenco feminino, alegando falta de patrocínio.

"Perguntei para eles: 'Se conseguirmos patrocínio, vocês retomam o futebol feminino?'. Responderam que sim", diz Erika.

A jogadora pediu ajuda a Neymar, então atacante do Santos, e, juntos, levantaram cerca de R$ 1,5 milhão em patrocínios. Mesmo assim, o Santos desfez a equipe, afirmando que o valor era insuficiente.

"Investíamos aproximadamente R$ 2 milhões por ano sem nenhuma perspectiva de retorno", afirmou o clube por meio da assessoria de imprensa.

Do Santos, Erika foi direto para o Centro Olímpico, time vinculado à Prefeitura de São Paulo. O centro abriga equipes de alto rendimento de várias modalidades. No caso do futebol feminino, há 120 meninas que treinam na categoria sub-13 ao adulto. A prefeitura fornece o espaço e o suporte técnico às atletas, mas os salários e a manutenção ficam por conta de patrocinadores.

No início de 2013, entretanto, quatro patrocinadores deixaram de investir no time. As atletas ficaram quatro meses sem receber salário. Os pagamentos foram retormados em maio, mas com um corte de 60%. A Folha apurou que os salários iam de R$ 800 a R$ 5.000, dependendo do currículo da atleta. Hoje, elas recebem de R$ 320 a R$ 2.000.

As duas principais empresas patrocinadoras, a Marabraz e a Liderrol, rescindiram o contrato em dezembro, antes do prazo. A Marabraz afirmou, em nota, que suspendeu "patrocínios que não atingiram resultados satisfatórios", como o do Centro Olímpico, que deveria ir até fevereiro.

Já o presidente da Liderrol, Paulo Fernandes não soube dizer quanto tempo faltava para o término do contrato, mas afirmou que a mudança da gestão da prefeitura influenciou na decisão. "O secretário [municipal de Esportes, Lazer e Recreação, Bebeto Haddad] era meu amigo e me pediu ajuda, então me sensibilizei e ajudei. Nada contra o governo atual, mas eu tinha confiança naquele pessoal [da gestão anterior]." Fernandes ainda disse que patrocinou o time por questão "ideológica, pois não tinha retorno nenhum".

Apesar da dificuldade em encontrar novos patrocinadores, o Centro Olímpico anunciou neste mês a vinda de Cristiane Rozeira de Souza Silva, 28, a maior artilheira da história das Olimpíadas.

Apesar de sua contratação ainda não ter sido confirmada, a atacante veio da Coreia do Sul e está treinando com a equipe desde o início do mês.

Procuradas, a Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação, e a Associação Desportiva Centro Olímpico, que gere as contratações, não quiseram se pronunciar sobre a contratação da nova jogadora em meio à crise financeira.

DO CLUBE À SELEÇÃO

Questionada sobre quantos campeonatos já participou usando o uniforme verde e amarelo, Andreia Rosa de Andrade, 28, começa a enumerar nos dedos. Depois da contagem, dá uma risada: "acho que estou ficando velha".

Andreia já representou a seleção brasileira em praticamente todos os torneios internacionais, como o Campeonato Sul-Americano, a Copa da Paz e a Olimpíada de Pequim, em 2008, quando conquistou uma medalha de prata.

Ela é uma das jogadoras do Centro Olímpico que já passaram pela principal equipe canarinha. Para as outras, a seleção é um sonho. As atletas são convocadas a partir de sua desemprenho representando clubes nos raros campeonatos da modalidade.

No calendário oficial da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), o único é a Copa do Brasil de Futebol Feminino. Segundo Márcio Oliveira, técnico da seleção, existem poucos campeonatos estaduais consolidados, como em São Paulo, na Bahia e em Pernambuco.

As federações que não realizam torneios estaduais de futebol feminino indicam clubes para participar da Copa do Brasil. Assim, times que ganharam estaduais enfrentam equipes que sequer competiram.

Segundo Gustavo Lopes, professor em Direito Desportivo, a lei Pelé, que regulamenta o esporte no Brasil, define que os clubes são obrigados a firmar contrato de trabalho com jogadores maiores de 21 anos para participar de competições profissionais. Mas, como os jogos femininos são amadores, não existe a mesma obrigatoriedade.

"Essas atletas se enquadram na categoria de autônomas, ou seja, maiores de 16 anos, sem relação empregatícia. Têm contratos temporários, que terminam com as competições."

Uma pesquisa da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), feita pela professor Osmar de Souza Júnior, aponta que havia 175 clubes femininos disputando campeonatos estaduais no país de 2011 a 2012. São Paulo tem o maior número de clubes, com 18, seguido de Alagoas, com dez.

Em comparação, há mais de 800 times de futebol masculino no país, segundo levantamento da Folha.

Para o técnico do Centro Olímpico, Arthur Elias, 31, o futebol feminino está num ciclo negativo, pois há pouca visibilidade e, consequentemente, baixo investimento e dificuldade de profissionalizar. "Esperamos que, com a Olimpíadas aqui no Brasil [em 2016], os próximos anos sejam um marco de apoio à modalidade, porque o futebol é do brasileiro e mulher também tem o direito de jogar bola".

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Este texto faz parte do especial "Brasil - Terra do Futebol", projeto final da 55ª turma do Programa de Treinamento em Jornalismo Diário da Folha, que tem patrocínio da Odebrecht, da Philip Morris e da Ambev


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