Folha de S. Paulo


'Sou muito mais do que lésbica', diz youtuber do Canal das Bee

Aquarelle
Jessica Tauane - cred Photo Aquarelle
Youtuber Jessica Tauane, dona dos canais Gorda de Boa e Canal das Bee

Quem vê a youtuber Jessica Tauane, 25, falar abertamente e com muito bom humor sobre sua sexualidade nos vídeos do Canal das Bee não imagina que ela já pensou em suicídio por não se aceitar como lésbica. "Eu era da igreja e sempre escutei que o que eu estava sentindo era muito errado, que era pecado", conta.

Segundo a paulistana, ver que não estava sozinha nessa foi o que mais ajudou a superar a fase ruim. E foi pensando em fazer o mesmo por outras pessoas que, em 2012, ela criou o Canal das Bee, hoje com mais de 280 mil inscritos. "O canal surgiu de um sofrimento meu e conseguimos transformar num meio de tentar evitar que mais gente passe pelo que eu passei", diz a jovem formada em comunicação de multimeios.

Criadores digitais
Produção de conteúdo na internet
Pablo Peixoto, fundador do canal de entretenimento e cultura pop Qu4tro Coisas

A descrição do Canal das Bee diz que não se trata de só um canal contra a homofobia. É "um canal contra o preconceito, contra a transfobia, a bifobia, a lesbofobia, o machismo. Um canal a favor da diversão, do riso e de viver a vida do jeito que você quiser". Assim como o canal, Jessica também não se encaixa em uma categoria só: é lésbica, gorda, religiosa, feminista, workaholic...

Hoje, Jessica tenta atingir o público LGBT mais jovem e informar o maior número de pessoas para combater o preconceito. O sucesso do canal ela atribui à sinceridade e à autocrítica.

Por isso usa seu outro canal, o Gorda de Boa, cujo nome é inspirado nos xingamentos que recebeu, para falar de seus outros temas, como viagens, alimentação, saúde. "Sou muito mais do que lésbica."

A Folha conversou com ela sobre os canais, a militância e a relação com a religião, confira:

Folha - Como foi a criação do Canal das Bee?

Jessica Tauane - Quando eu me toquei da minha sexualidade, entrei em desespero. Eu era da igreja e sempre escutei que o que eu estava sentindo era muito errado, que era pecado. Daí eu entrei em depressão, fiquei muito tempo mal, não conseguia conversar com ninguém.

Entrei no YouTube e havia um canal chamado Dedilhadas, feito por duas lésbicas. Eu, com todo aquele grilo, vi duas meninas lidando naturalmente com o motivo dos meus grilos, daí comecei a pesquisar, a ler e assistir a coisas sobre o assunto e fiquei com esperança. Eu as via e me perguntava: 'será que algum dia vou conseguir ser tão feliz assim?'

Em 2012, eu já estava bem, já tinha conseguido me aceitar. Aquele canal que me ajudou tinha acabado. Aí eu pensei 'gente, acho que eu consigo fazer isso, conversar com esse pessoal que tá passando pelo que eu passei', porque existe muita gente nessa. O Canal das Bee surgiu daí. O canal surgiu de um sofrimento meu e a gente conseguiu transformar num meio de tentar evitar que mais gente passe pelo que eu passei, porque não é justo, não precisa.

A que atribui o sucesso do Canal das Bee?

Muita sinceridade e autocrítica. Uma vez fizemos um vídeo racista, quando me avisaram, fiquei desesperada, com vergonha, queria deletar.

Mas fiz outro vídeo com a Jéssica Ipólito, que é sapatão e negra, abordando isso, a gente sentou e explicou os termos racistas, pedi desculpas.

Eu tenho um canal no YouTube, falo de diversidade, e olha como isso não me exime de ser preconceituosa com grupos sociais aos quais eu não pertenço!

Estamos sempre muito abertos e dispostos a melhorar, a gente faz tudo tão do fundo do coração, que as pessoas percebem isso.

Como lida com as críticas? Já foi ameaçada?

Quando as críticas são bem embasadas, de pessoas que não são preconceituosas, não tenho grilo nenhum, gosto de críticas construtivas.

Mas quando vem chamar de gorda, veadinho, é porque o cara é burro. Atesta a importância do nosso trabalho. Levo com muito bom humor, mas só porque estou bem.

A primeira vez que recebi um ataque coordenado, umas 10 mil pessoas no meu perfil pessoal, fiquei muito assustada. Dei uma desligada na internet, era muito ódio. Mas percebi que eles estão atacando justamente pra me fazer parar. Já me ameaçaram de morte, e isso dá um pânico enorme, mas eu não vou parar. Se eu me rendo, quem vai seguir o trabalho? É isso o que eles querem.

Já aconteceu alguma coisa que te fez pensar em desistir?

Um bilhão de vezes, mas sempre que eu penso nisso, acontece alguma coisa. Chega uma pessoa e me diz que pensou em se matar, mas assistiu ao Canal das Bee e desistiu. Daí eu penso 'poxa, tenho que seguir'.

Eu não consigo parar, amo demais o que eu faço. O cenário dos vídeos fica no meu quarto, então eu já acordo olhando pro Canal das Bee, é a paixão da minha vida, ele me salva, me mantém viva.

E a saída do armário?

Entrei na universidade com 17 anos, tive a sorte de conhecer um menino que estava passando pelo mesmo que eu.

Ele vinha de uma família conservadora, íamos pra balada gay no fim de semana, mas depois íamos à missa pra pedir perdão. A gente até ficou —era a última tentativa, o gay e a lésbica juntos tentando ser hétero.

Eu fui ficar com uma menina só um ano depois, e demorei muitos anos pra conseguir de fato enfrentar a verdade. Eu pensava em ficar com uma menina e tentava esquecer, era horrível. Por isso que é importante ter amigos e espaços LGBT.

Sempre fui muito amiga dos meus pais, conversava com eles sobre tudo, e de repente parei de contar. Tentei por muito tempo ser hétero. Falo que não existe cura gay, porque senão eu teria me curado com certeza absoluta! Eu rezava, fazia jejum, penitência, tentei tudo possível, pedia pra Deus fazer um milagre em mim porque não queria isso pra minha vida.

O pior sentimento do mundo foi esse que eu senti naquela época, o medo de meus pais pararem de me amar. Só tive coragem de contar dois anos depois.

Eu tinha acabado de levar um pé na bunda 'daqueles', e estava muito mal, minha mãe perguntava o que era, e eu dizia que só estava triste. Estava no quarto chorando e ela passou um recadinho por debaixo da porta: 'se estiver muito pesado, divide o peso com a mãe que eu te ajudo a carregar, vou te amar não importa o que acontecer'. Era ela dando a indireta direta de que queria saber. Fui correndo no quarto dela, chorando muito, mas ela já estava bem, então não foi tão traumático. Acho que eu consigo falar tranquilamente sobre isso hoje por isso.

Vídeo de apresentação do canal Gorda de Boa

Como decidiu criar o Gorda de Boa?

Tenho uma doença de pele chamada hidradenite supurativa, que chega a me deixar de cama, pela dor. Eu já tinha ido a uns 18 médicos e não conseguia encontrar tratamento, até que fui a um que disse que quanto mais gordura no corpo, pior seria a doença. Ok, tinha que emagrecer. Mas como emagrecer se a pessoa não quer?

Eu ainda estava só pensando em criar um canal pra me ajudar a lidar com a dieta, quando fui acampar na praia com a JoutJout [Julia Tolezano, youtuber] pra gravar um vídeo. Quando lançamos o vídeo, a maioria dos comentários era de meninas que não vão à praia por vergonha do corpo, mulheres que deixam de viver a vida por grilo com estética. Resolvi conversar com essas meninas, porque não precisa ser assim.

Daí lancei o Gorda de Boa, mas acabou que a médica que me trata hoje em dia falou que não tem relação com o peso, é só genética. Refleti e vi que estava bem com a minha imagem.

Toda mulher tem um peso que ela se gosta, peso ideal. E o meu é de 85 a 90 quilos. Me olho nas fotos e me acho mais gata assim. Olho os vídeos da época da dieta, com uns 20 quilos a menos, e não gosto, não me reconheço.

O Gorda de Boa me completa. É muito bom que posso falar de tudo que eu quiser, coisa que no Canal das Bee é diferente. O Canal das Bee é LGBT, mas eu sou muito mais do que lésbica.
Tenho muitos outros assuntos, mas se fosse no Canal das Bee falar de algo mais aleatório, ia perder o sentido.

Como foi a repercussão quando participou do comercial de linha de maquiagem?

Foi ótimo, muito legal! Imagina, foi com a Elke Maravilha! Foi logo antes de ela morrer, foi um presente pra mim conhecê-la.

Nunca imaginei que eu, com esse meu jeitinho todo fora do padrão, seria chamada pra um comercial de beleza! Fiquei muito feliz, o engajamento da campanha mostrou até pra outras empresas que é possível, abriu um espaço. Fico emocionadíssima, porque o mercado publicitário impacta milhões de brasileiros todos os dias, está dando certo fazer esse meio de campo.

Olha só o exemplo do MC Biel, se fosse 10 anos atrás, talvez ele estivesse até mais famoso depois do assédio, hoje em dia não é mais assim, cadê esse menino? Acabou com a carreira dele. E foi pela militância on-line, a gente vai lá e diz que não aceita mais, é muito bom.

Participar de comerciais ajuda na militância? Recebeu alguma crítica quanto a isso?

Não. Ajuda a manter o trabalho. É uma coisa muito particular minha, é uma estratégia que eu tenho. Eu entendo todos os problemas envolvidos, mas só consigo continuar o trabalho que eu faço se dialogar com o mercado publicitário. Fico feliz que tão me chamando, porque significa que estou produzindo um conteúdo bacana. Já foi um grilo pra mim, hoje acho ótimo, estou mais aberta. Estou bem porque sei o trabalho que eu faço, sei a dimensão disso tudo.

Como avalia de que campanhas concorda em participar? Já recusou alguma?

Já, claro. A primeira regra é não mexer no conteúdo do Canal das Bee. Se eu quiser começar todos os vídeos falando "Fora Temer", eu vou fazer isso. Em conteúdo não se mexe.

Já recusamos algumas porque não tinham a nossa cara. Algumas até que geraram polêmica, e se a gente tivesse aceitado, poderiam dizer que "se o Canal das Bee tá de boa, então está tranquilo".

Consegue se sustentar com os canais?

É muito instável, a gente nunca sabe o quanto vamos receber, mas fazemos muito esforço pra que dê certo. A gente tem esse plano de realmente trabalhar produzindo conteúdo pra internet, e não queremos parar só no canal. É arriscado, mas estamos nessa, querendo fazer dar certo.

Não criamos mais conteúdo só por falta de tempo, e na verdade nós não podemos parar, né, os emails e mensagens que chegam nos lembram do porquê de a gente precisar continuar, ainda falta muito por fazer. Por mais tempo que estejamos nessa, a gente ainda se desespera com as situações que as pessoas nos relatam, não tem como não.


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