Folha de S. Paulo


Como a modificação na Lei de Direitos Autorais pode deixar seu Spotify mais caro?

Reprodução
Vídeo de divulgação do Spotify, serviço de streaming de música
Spotify pode ficar mais caro

Se você esteve vivo e usando a internet de 2014 até aqui, sabe sobre a treta entre Taylor Swift e o Spotify. Insatisfeita com os pagamentos, a cantora removeu seu catálogo da plataforma de streaming em 2014. E prometeu nunca mais voltar.

Porém, a discussão sobre a remuneração que artistas e compositores recebem de serviços como o Spotify não acontece apenas na gringa e com artistas montados no dinheiro por algumas gerações.

Esse papo chegou também ao nosso quintal e divide opiniões de artistas do mainstream, artistas independentes, plataformas, gravadoras, distribuidores e associações desse nosso Brasilzão.

E o que você, fã e ouvinte das plataformas, tem a ver com isso? A conversa sobre direito autoral sempre soa muito chata para o cidadão comum. Parece que esse papo rola num plano diferente daquele habitado por nós, meros comedores de arroz com feijão.

Mas o fato é que a depender para onde essas discussões caminharem, as tarifas cobradas pelos serviços de streaming poderão aumentar e obras de artistas nacionais poderão ser removidas. E é aí que surge esse assunto chato, hermético, complicado e que parece não interferir na sua vida –e interfere, sim, na forma como você consome música.

Do dia 15 de fevereiro ao último dia 30 de março, o Ministério da Cultura (MinC) fez uma consulta pública sobre gestão coletiva no ambiente digital. Em outras palavras, o MinC estava em busca de entender quais direitos incidem sobre músicas reproduzidas na internet. O ponto mais polêmico dessa consulta está justamente no streaming. Segundo a proposta do MinC, o streaming seria definido como "execução pública", e não apenas uma ferramenta de reprodução de uma obra.

Isso significa que, para o MinC, o streaming está mais próximo de um DJ mandando "Paredão da Metralhadora" na micareta do que você escutando o último CD do Disclosure nos fones de ouvido. Quando há execução pública de uma música, ocorre uma transmissão que possibilita a audição, sem que o usuário final pretenda possuir ou ter a propriedade da cópia da obra. É o que ocorre com músicas em TV, rádio, cinema, shows e baladas.

No CD, você paga pelo direito para ter a cópia de uma obra e não há execução pública. E é por isso que as lojas virtuais de MP3, como o iTunes, não estão nessa discussão. Se você pagou por um download, o arquivo MP3 é uma cópia da obra.

A definição sobre o streaming, por sua vez, é mais complicada. Você não tem cópias da obra, mas está ativamente escolhendo o quê e quando ouvir. Isso é diferente do que ocorre quando rola música na TV ou no rádio, quando alguém escolhe quando e o quê vai tocar. E aí, o Spotify está mais para CD ou para o rádio?

Essa diferença de visão causou um racha na indústria. De um lado, junto com o MinC e a favor do streaming como execução pública, estão o Ecad e os baluartes do Procure Saber, a organização que representa os grandes nomes do mainstream nacional. De outro, estão plataformas de streaming, gravadoras e distribuidores.

No centro do debate, está o nível de interatividade proporcionado por serviços de streaming.

"No streaming, o serviço é montado a partir das preferências de uma pessoa, assim como ocorre na venda de discos. Um cidadão usa o mesmo serviço que o outro na mesma hora, no mesmo lugar, cada um em sua conta pessoal. Jamais a seleção que será oferecida a um será a mesma que ao outro. Mesmo se dois indivíduos acessarem a mesma playlist de um mesmo serviço ao mesmo tempo, a música ou o momento da música em que cada um ouvir será diferente", diz Luciana Pegorer, diretora executiva da Associação Brasileira da Música Independente, entidade que reúne gravadoras e selos independentes.

O argumento é refutado pelo Ecad, que diz: "Essa tese não se sustenta entre outras razões pelo fato de que a interatividade, ao contrário do que muitos defendem, sempre esteve presente nas modalidades de uso relacionadas ao direito de execução pública e, no entanto, jamais excluiu a sua obrigatoriedade de licenciamento. De que forma? Quando os ouvintes de uma rádio pedem para serem executadas músicas de suas preferências; quando escolhem a rádio em razão do gênero musical preponderantemente executado; quando pedem músicas no bis de um show; quando assinam pacotes de TV por assinatura e no recesso de seu lar escolhem assistir a tal ou qual canal, tal ou qual programa ou filme a la carte".

SIGA O DINHEIRO

Mas qual o motivo para tanto debate sobre os direitos que incidem nos serviços de streaming? Como diz o mantra de Todos os Homens do Presidente, siga o dinheiro.

Atualmente, funciona assim o caminho da grana: plataformas de streaming pagam o direito de reprodução para gravadoras e distribuidores, que repassam os valores aos artistas de acordo com seus contratos individuais. Claro, no caminho, tanto gravadoras quanto distribuidores mordem o seu pedaço do bolo.

O direito autoral é repassado às editoras, que também levam o seu antes de repassar para os compositores.

No modelo proposto pelo MinC, o direito autoral passa exclusivamente a ser recebido pelo Ecad, que, então, repassaria aos seus titulares, não sem antes abocanhar 20% (6,12% ficam para as associações de música para o pagamento de suas despesas operacionais e 13,88% são retidos pelo Ecad para a administração de suas atividades).

"Seria inclusão de mais um intermediário na cadeia de negócios já instituída e cada vez mais eficiente nos repasses", diz Arthur Fitzgibbon, country manager do Onerpm, que distribui digitalmente os trabalhos de 22 mil artistas.

Vice
Foto ilustrativa para matéria da Vice

O produtor musical Carlos Mills faz uma conta simples para exemplificar o impacto do Ecad no mapa dos repasses.

"Imagine uma distribuição de R$ 100. Se o autor de uma obra musical recebe 75% do aproveitamento econômico da obra e a editora 25%, na distribuição direta a Editora faria o repasse ao autor de R$ 75.

Caso se considere que também existe execução pública no streaming interativo, uma questão preliminar precisará ser enfrentada de imediato: qual seria o peso percentual de cada uma das modalidades de direito (reprodução x execução)?

Por hipótese, vamos imaginar que seja 50/50. Segundo o nosso exemplo então, o autor e a editora receberiam R$ 37,50 e R$ 12,50, a título de direitos de reprodução, neste sistema que chamaremos de "misto" (Reprodução + Execução Pública).

Pelo lado da Execução Pública, outros R$ 50 entrariam para o sistema ECAD, que reteria R$ 8,75 (17,5% de administração) e geraria novos relatórios, nos valores de R$ 30,93 para os autores e R$ 10,31 para os editores.

Resumindo: fazendo-se a distribuição direta, o autor recebe R$75 pelo uso de sua obra. Já na modalidade "mista" (reprodução + execução pública), o autor recebe R$68,43 para a mesma arrecadação."

"No final, todo mundo ganha menos, exceto o ECAD que hoje não ganha nada e passaria a ser mais um intermediário em toda essa transação", afirma Pegorer.

PEDÁGIO DAS GRAVADORAS

Ainda assim, o pedido pelo novo modelo partiu dos artistas - a presença do Procure Saber nos debates deixa isso claro. "O entendimento geral da classe artística é o de que não estão sendo adequadamente remunerados. As reinvindicações vieram nesse sentido", diz Silvana Demartini de Oliveira, assessora para direito intelectual do MinC.

Não é de hoje que gravadoras e artistas têm seus desentendimentos, muitos graças a contratos escusos e cláusulas abusivas. Exemplo clássico: por meio de negociatas, Michael Jackson se tornou dono do catálogo dos Beatles na década de 1980. Paul McCartney ainda está tentando reaver esses direitos.

No ano passado, vazou o contrato entre a Sony Music e o Spotify e ficou claro que a major deu um tombo em seus artistas. Pelo contrato, a gravadora recebeu US$ 42,5 milhões em adiantamentos e não há indícios de que tenha repassado o dinheiro aos artistas. A Sony recebeu também US$ 9 milhões em espaço publicitário dentro da plataforma que poderiam ser usados para promover seus artistas ou vendidos para outras empresas. Na segunda hipótese, não há obrigação legal de repasse.

Assim, pedir pela incidência de execução pública no streaming pode ser uma estratégia de artistas para dar um tombo nas gravadoras. "Os artistas representados pelas grandes gravadoras brigam para ter pleno acesso à prestação de contas das próprias gravadoras", diz Maurício Bussab, fundador da Tratore, que realiza distribuição digital.

No atual modelo, no qual o dinheiro é distribuído como na época dos CDs, os artistas ficam restritos a percentuais do direito de reprodução firmados em contratos com as gravadoras. Com um agravante: para muitos dos dinossauros da MPB, o melhor de sua obra (ou seja, com mais potencial de plays no streaming) está sob o domínio desses contratos, que, como sabemos, podem não ser tão favoráveis assim.

Com o modelo proposto pelo MinC, o objetivo dos artistas é tirar uma parte do bolo das gravadoras ainda que se tenha que pagar o pedágio do Ecad. Em alguns casos, pode ser mais vantajoso.

CONTABILIDADE

Se o modelo proposto pelo MinC vingar, o grande mistério é saber se o dinheiro pago pela execução pública sairá do montante já repassado a título de direito de reprodução ou se as plataformas de streaming terão que botar mais a mão no bolso.

Em uma nota de apoio à proposta do MinC, o Procure Saber afirma: "Do ponto de vista econômico, a instrução normativa (IN) não causa nenhum impacto econômico –nem para as plataformas digitais, nem para o consumidor. Os serviços gratuitos não serão afetados e os preços cobrados aos assinantes pelas plataformas, também não.

O que a IN provoca é uma redivisão dos valores pagos pelas plataformas digitais, por direitos de autor e direitos conexos, entre todos os titulares. Não há interferência quanto ao montante pago pelas plataformas digitais aos titulares". O MinC tem visão parecida.

Perguntei ao Ecad se o novo modelo resultaria apenas em redistribuição de valores e a resposta foi: "Não temos como afirmar. Apenas o que sabemos é que há grande insatisfação dos artistas em relação aos valores recebidos dos serviços digitais. E o Ecad, como representante deles, tem buscado a melhor forma de remuneração possível".

O outro lado da história teme que classificar o streaming como execução pública resultará em novos gastos para as plataformas. "Dificilmente não haverá impacto. A hora que o Ecad for autorizado a cobrar estes direitos e em paralelo produtores fonográficos e editores cobrarem também o seu quinhão, dificilmente a conta não será maior que 100%.

Isto porque, mesmo sendo considerado execução pública, ao proprietário do direito está facultado determinar o mandatário ou a administração direta. As majors continuarão cobrando a sua parte e os editores grandes também. Vai ser uma bela bagunça", diz Pegorer.

O Spotify concorda. "A gente entende que a classificação equivocada na conceituação dos direitos envolvidos no streaming pode ser uma ameaça ao nascente mercado de música digital no Brasil", diz Mia Nygren, diretora geral do Spotify para a América Latina. "É possível que uma nova tarifa referente aos direitos de execução pública seja somada a já atualmente cobrada pelos representantes dos direitos mecânicos".

E agora, chegamos ao ponto em que esse debate afeta você, fera. Caso as negociações caminhem para o cenário no qual as plataformas colocam mais a mão no bolso, os preços dos planos podem aumentar. E ninguém sabe o que pode acontecer com modalidades gratuitas.

"Uma margem menor pode nos obrigar a aumentar o preço final", diz Henrique Fares Leite, diretor de relação na América Latina do Deezer. "Essa não é nossa intenção, pois estamos tentando recriar um hábito de pagamento de conteúdo. E aumentar preço dificulta isso".

Há também no ar a incerteza sobre remoção ou não de conteúdo das plataformas. É possível que qualquer um dos lados, insatisfeito com o modelo de pagamentos que entrar em vigor, remova obras nacionais dos catálogos disponíveis nas plataformas.

FUTURO

Fechada a consulta pública, todas as contribuições, de internautas comuns a partes interessadas na história, serão analisadas. A expectativa do MinC é de que a instrução normativa, que ajuda na interpretação da lei atual de direitos autorais, com o novo entendimento sobre os direitos que incidem sobre no streaming seja publicada 30 dias após o encerramento da consulta, mas ainda não há certeza se sua vigência será imediata ou futura.

No segundo semestre de 2016, o MinC deve propor o anteprojeto de reforma da lei de direito autoral no ambiente digital, o que deve trazer de volta a mesma discussão sobre quais direitos incidem no streaming. Ou seja, vem muito mais pano para manga por aí.

*O Google foi procurado pela reportagem, mas decidiu não participar.

**Após contato inicial, em que avaliaria sua participação na reportagem, o Procure Saber não retornou mais os contatos. O post, porém, segue aberto para quem quiser participar.

Leia no site da Vice: Como a modificação na Lei de Direitos Autorais pode deixar seu Spotify mais caro?


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