Folha de S. Paulo


A surreal experiência de ver a TV dos anos 60 em app de transmissão

Paul Child/WGBH/NYT
O programa
O programa "The French Chef", estrelado por Julia Child, foi tema de maratona no Twitch

Quando eu era adolescente, meus amigos e eu nos divertíamos muito assistindo televisão juntos –muitas vezes, a programas realmente péssimos– e zombando da programação impiedosamente. Nós nos tornávamos o entretenimento, em lugar do diálogo canhestro ou das reviravoltas de trama que desprezávamos.

Na semana passada, senti que tinha 16 anos de novo, ao assistir a horas ininterruptas de "The French Chef", o programa de culinária televisivo pioneiro apresentado por Julia Child, em companhia de milhares de completos desconhecidos online. Foi uma experiência surreal, e em muitos momentos, hilariante.

A maratona de Julia Child aconteceu no Twitch, um serviço controlado pela Amazon que desenvolveu audiência gigantesca on-line ao permitir que gamers exibam vídeos que os mostram jogando Counter-Strike, League of Legends e outros jogos, via internet.

Embora existam muitos outros sites de vídeo em formato de streaming –especialmente o YouTube, muito maior–, boa parte da magia do Twitch é a maneira pela qual os membros da audiência interagem uns com os outros e com os responsáveis pelas transmissões em tempo real, por meio de uma sala de chat conectada ao vídeo em exibição.

No caso da maratona de Child no Twitch, o divertido era sentar na geral. Se você deseja estudar cuidadosamente a técnica de Child para produzir pato assado com laranja, há muitos lugares melhores em que encontrar episódios de "French Chef" online, entre os quais YouTube e iTunes. Mas outros sites não veem Child coberta de elogios por sua habilidade no uso de uma faca, como se ela tivesse acabado de estripar um inimigo em Mortal Kombat.

"Esse estágio é bem difícil, mas Julia está executando perfeitamente; ótima jogadora", escreveu um jogador do Twitch.

Parte do charme de assistir a "The French Chef" no Twitch era o jeito meio peixe fora d'água do evento. A audiência do Twitch tende a vir dos homens dos 18 aos 34 anos. Não só a maioria dos usuários do Twitch não estava nem viva em 1963, quando o programa começou a ser exibido, como alguns de seus pais tampouco eram nascidos.

O fato de que Child tivesse uma presença idiossincrática na TV tampouco atrapalhou. Ela era tanto uma apresentadora muito querida como alvo de famosas paródias, a mais famosa das quais por Dan Aykroyd, no programa "Saturday Night Live", em 1978.

Esta foi a segunda vez que o Twitch se voltou a uma celebridade televisiva morta para escapar um pouco ao seu conteúdo, concentrado em videogames. No ano passado, o serviço surpreendeu muita gente –o que inclui alguns de seus executivos– ao atrair 5,6 milhões de espectadores com a exibição de mais de 400 episódios de "The Joy of Painting", apresentado pelo pintor de paisagens Bob Ross.

Depois que a maratona de "The French Chef" se encerrou, na noite de sábado, o Twitch começou a mostrar diversos outros programas de culinária em um novo canal, entre os quais "Julia and Jacques - Cooking at Home", estrelado por Child e pelo chef Jacques Pépin, e "A Taste of History", com o chef Walter Staib.

As salas de chat do Twitch associadas a "The French Chef" e "The Joy of Painting" atraíram uma multidão de piadinhas internas dos videogamers, acompanhadas por gírias e emojis (no Twitch, eles são chamados de "emotes"). A comunidade gera memes –piadas e frases de efeito que ganham rápida popularidade online– em ritmo alucinante, indecifráveis para quem não seja fluente na língua natal do Twitch e da cultura dos videogames.

No começo, eu me sentia como Neo em "Matrix", assistindo a linhas de código incompreensíveis correndo pela tela diante de mim. Consegui me situar recorrendo ao Google e a pessoas que conhecem bem o Twitch. Boa parte da conversa era juvenil, parte dela insultuosa, mas os momentos engraçados e oportunos ocorriam com frequência suficiente para me levar a voltar.

Em um dos primeiros episódios, Child usava um martelo de madeira para empurrar uma faca através da espinha de uma galinha assada. A cena era divertida e violenta, e inspirou o pessoal do Twitch, que fez da apresentadora uma espécie de Hannibal Lecter de avental.

"Hammer time [hora do martelo]! Que horror! A açougueira!", as mensagens corriam.

A sala de chat rolava de rir com o copioso uso de manteiga e de diferentes formas de álcool nas receitas de Child. Sempre que ela despejava sal em um prato, vinha uma inundação de emojis de saleiros.

Quando Child mostrava sua habilidade no uso da faca, a sala de chat do Twitch se enchia com as letras VAC. Aprendi mais tarde que a sigla significa "Valve Anti-Cheat", um software criado pela produtora de videogames Valve para determinar se jogadores estão trapaceando em videogames da produtora, como "Counter-Strike". A sugestão parecia ser a de que a habilidade de Child na cozinha era tão elevada que merecia ser encarada com suspeita.

Por outro lado, sempre que ela deixava cair alguma coisa que estivesse preparando, ou cometia erros, o que acontecia frequentemente, o pessoal do Twitch digitava "ruined" [arruinada], um meme que se tornou um dos favoritos dos usuários durante a maratona de Ross, quando ele parecia dar uma pincelada errada. "Roux-end" era outra variação da piada, durante a maratona de Child.

Child terminou por não atrair tantos espectadores quanto Ross, no Twitch. Em seu pico, cerca de oito mil espectadores estavam assistindo ao programa de Child ao mesmo tempo, ante cerca de 183 mil no caso de Ross, de acordo com o Twitch.

Em todos os momentos em que verifiquei, a dimensão da audiência era suficiente para incluir Child entre os 25 vídeos mais assistidos do Twitch naquele momento –nada mal para um programa de televisão que começou mais de meio século atrás.

No caso específico da maratona de Child, o programa dela era o aperitivo. A comunidade do Twitch era o prato principal.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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