Folha de S. Paulo


Filhos de rebelde angolano estão processando os criadores de 'Call of Duty' por difamarem seu pai

Rolou uma cena incomum na Suprema Corte de Nanterre, um subúrbio de Paris, na semana passada. De um lado estavam os filhos de Jonas Savimbi, um chefe rebelde angolano morto em 2002. Do outro estava a Activision, a desenvolvedora de videogames americana mais conhecida por criar a série "Call of Duty".

O caso se baseia na presença de um personagem chamado Jonas Savimbi na primeira missão de "Call of Duty: Black Ops II", lançado em 2012 para PCs, PlayStation 3, Xbox 360 e Wii U. Segundo os advogados que representavam os filhos de Savimbi, o retrato do pai no jogo constitui "difamação" e "mácula sua honra".

Em declaração para a rádio francesa RFI na terça-feira (2) passada, o advogado da Activision Etienne Kowalski disse que o retrato de Savimbi no jogo é "favorável", já que o papel de Savimbi no videogame é ajudar o jogador a completar sua missão. Ele diz que Savimbi é retratado "pelo que foi", ou seja, "um chefe da guerrilha".

O caso, que deve ser resolvido até o meio de fevereiro, pode abrir precedente legal na França, afinal, nunca na história deste país a justiça teve que determinar se o retrato de um indivíduo num videogame poderia ser considerado calunioso ou difamatório.

"Isso é território não-mapeado, há um vácuo legal quanto a retratos em videogames", disse Carole Enfert, a advogada que representa os três filhos de Savimbi. Os filhos do falecido chefe têm idades entre 20 e 30 anos,e estudam e trabalham na França há vários anos.

"Os filhos do Sr. Savimbi estão pedindo aos desenvolvedores do jogo um milhão de euros", ela disse à VICE News. "Pode parecer muito, mas é uma quantia simbólica comparado com o retrato que essa empresa fez do pai deles."

"Call of Duty: Black Ops II" –geralmente referido simplesmente como "Black Ops II"– foi um tremendo sucesso comercial e teria vendido 29 milhões de cópias no mundo todo. Estima-se que tenha rendido mais de um bilhão de euros.

As cenas que enfureceram a família de Savimbi estão na primeira missão do game. O jogador vê uma longa sequência de abertura sobre uma batalha em Angola em 1986.

"Nosso cão na luta era um cara chamado Jonas Savimbi", diz um personagem. Savimbi então aparece na tela por 48 segundos no trailer de abertura.

Trailer de "Black Ops II"

Savimbi –que é identificado pelo nome– pode ser visto reunindo as tropas e brandindo um lançador de granadas num veículo numa zona de combate.

"Um dos filhos de Jonas Savimbi descobriu a existência desse personagem nas redes sociais em 2014", explicou Enfert. "Ele ficou chocado com a semelhança e a violência do personagem baseado no pai. Ele e seus irmãos sentem que foram prejudicados."

O fato é que, durante o jogo, várias vezes o personagem apresentado como Savimbi é ouvido provocando os inimigos. Ele diz coisas como: "Eles são fracos, temos que acabar com eles!" e "Morte ao MPLA!". Depois de dez minutos de jogo, o jogador recebe informações de Savimbi e sobe num helicóptero para chegar à próxima posição.

A série "Call of Duty" é uma franquia popular lançada em 2003. Conhecido como um videogame de tiro em primeira pessoa, a missão é derrubar alvos inimigos. Apesar de ter serem baseado em guerras reais no começo, hoje os videogames misturam história e ficção.

Em setembro de 2014, um dos roteiristas da franquia foi recrutado pelo Atlantic Council –uma usina de ideias que presta consultoria para o Exército Americano e a OTAN, entre outros– para desenhar cenários de apocalipse em potencial que levariam à queda dos EUA. A primeira missão de "Black Ops II" é baseada na guerra civil de Angola, um conflito que durou três décadas e matou cerca de 500 mil pessoas.

Angola, um ex-colônia portuguesa, ganhou a independência em 1975. Uma luta pelo poder se seguiu entre várias facções armadas, incluindo a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), liderada por Jonas Savimbi, e o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), um grupo pró-comunista apoiado pela União Soviética e Cuba. Acordos de paz foram assinados em 1991, mas em 1992, Savimbi continuou a luta. Ele foi morto por forças angolanas em 22 de fevereiro de 2002.

"Ele era um chefe militar, claro, mas também era uma figura política com muitos aliados, incluindo Nelson Mandela", disse Enfert à VICE News. Savimbi também teve apoio da África do Sul e dos EUA contra o bloco soviético.

"Nosso problema com o videogame é que isso mostra apenas um lado de Jonas Savimbi", explicou Enfert. "Ele é retratado como um grande bruto."

"Nesse julgamento, não estamos tentando provar se Savimbi foi um homem bom ou não", disse Enfert. O objetivo da família, segundo ela, é "iluminar" o enquadramento legal que regula a publicação de videogames.

"Hoje é Jonas Savimbi, mas poderia ser qualquer um. Você gostaria de ser retratado num videogame sem poder dar sua opinião nisso? Eu não", disse a advogada.

Na França, calúnia é definida como "a alegação de um fato não provado que é prejudicial para a honra e a estima de uma pessoa". Isso é regulado por uma lei de 20 de julho de 1881 sobre liberdade de imprensa –mas que também se aplica à imagem. Queixas de difamação, no entanto, devem ser feitas dentro de três meses da publicação da ofensa.

"Black Ops II", de 2012, portanto não estaria sujeito ao processo, uma possibilidade que Enfert diz ser injusta com seus clientes. "Meus clientes não são gamers, eles nunca foram informados sobre nada do uso da imagem do pai", ela disse. Se o tribunal de Nanterra considerar a Activision culpada de calúnia, essa pode ser "a primeira [decisão do tipo] no universo dos videogames na França", diz Enfert.

Contatado pela VICE News, o advogado da Activison não conseguiu responder a tempo para a publicação.

Tradução do inglês de MARINA SCHNOOR


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