Folha de S. Paulo


Brigas entre programadores ameaçam futuro do bitcoin

Daniel Auf der Mauer/The New York Times
-- PHOTO MOVED IN ADVANCE AND NOT FOR USE - ONLINE OR IN PRINT - BEFORE JAN. 17, 2016. -- Mike Hearn in his apartment in Zurich, Jan. 10, 2016. Hearn, one of a small brotherhood of Bitcoin developers around the world, has removed himself entirely from the virtual-currency project because of a nasty dispute that exposed fundamental differences about the aims of the enterprise and how online communities should be governed. (Daniel Auf der Mauer/The New York Times) - XNYT42« Back
Mike Hearn em seu apartamento na Suíça; ele é um dos 'programadores-chave' do bitcoin

Mike Hearn, um programador de computadores britânico, ficou trancado em seu apartamento de dois quartos em Zurique, por diversos dias, neste mês, para escrever um apaixonado protesto.

Dois anos atrás, Hearn deixou um confortável emprego como programador na unidade suíça do Google para se dedicar em tempo integral à sua grande paixão: a moeda virtual bitcoin. Ele era parte do pequeno grupo de desenvolvedores, de todo o mundo, que se dedicam a manter tanto o software básico que governa a criação de novos bitcoins quanto a rede na qual as transações financeiras com a moeda virtual acontecem.

Mas uma briga feia dilacerou a pequena irmandade de desenvolvedores do bitcoin e despertou dúvidas quanto à sobrevivência da moeda virtual. Hearn, até recentemente um dos líderes mais conhecidos do projeto Bitcoin, se desiludiu a tal ponto com ele que, em dezembro, vendeu as poucas centenas de bitcoins que lhe restavam e aceitou discretamente uma proposta de emprego apresentada por uma start-up.

O post apaixonado em que ele estava trabalhando para seu blog era o anúncio de que deixaria o bitcoin para trás de uma vez por todas. "O bitcoin deixou de ser uma comunidade transparente e aberta e se agora vive dominado por censura irrestrita e ataques mútuos entre os membros do grupo", ele escreveu.

A disputa –que surgiu de uma questão sobre o número de transações por segundo que a rede do bitcoin deve ser capaz de aceitar– pode parecer algo que interessa apenas aos mais dedicados seguidores da tecnologia. Mas expôs diferenças mais profundas sobre os objetivos básicos do projeto Bitcoin e sobre o governo das comunidades on-line.

As partes em conflito retrataram uma à outra como, de um lado, populistas cujo objetivo é expandir o potencial comercial do bitcoin, e, do outro, elitistas mais preocupados em proteger o status da moeda virtual como desafiante radical às moedas existentes.

A divisão levou, nos últimos seis meses, a ameaças de morte contra desenvolvedores do bitcoin e a ataques de hackers que derrubaram provedores de acesso à internet. Os dois lados se sentem profundamente traídos. Um dos principais antagonistas de Hearn, um barbudo programador californiano chamado Gregory Maxwell, também parece ter se afastado de seu trabalho no bitcoin, depois de receber ameaças anônimas de morte.

Essas disputas internas surgiram no momento em que a tecnologia do bitcoin começa a ganhar credibilidade em Wall Street e no Vale do Silício. Ao longo das muitas controvérsias que abalaram a moeda virtual –entre as quais diversos casos de roubo e fraude–, o software básico continuou funcionando como esperado.

Essa consistência elevou o valor dos bitcoins em circulação a mais de US$ 6 bilhões e levou empresas do setor de capital para empreendimentos a imaginar que a tecnologia poderia se tornar o futuro das finanças, uma maneira mais rápida e barata de executar toda espécie de transação financeira.

Parte do atrativo primário do bitcoin é sua promessa de oferecer alternativa mais segura e confiável às moedas e redes financeiras existentes. Ao contrário do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) e de Wall Street, instituições administradas por seres humanos, o bitcoin supostamente deveria depender da infalível lógica da matemática e dos códigos de computação.

Nesse sistema, programadores como Hearn, que muitas vezes contribuem voluntariamente com seus conhecimentos e trabalho, eram vistos como técnicos neutros.

A disputa atual, porém, é lembrete de que o software do bitcoin –como todos os códigos de computação– é um produto da mente humana e passa por evolução, e por isso seu desenvolvimento está sujeito às fragilidades humanas e a divergências de ideias.

Não há certeza quanto a quem realmente deu início à briga, mas no momento os dois lados estão em impasse, e isso deixou o software do bitcoin –e a moeda virtual em si– no limbo. Hearn está convencido de que o impasse em breve tornará difícil realizar até mesmo transações simples, e que isso terminará por afastar os usuários e resultar em um colapso de preço.

As preocupações de Hearn quanto ao impasse foram ecoadas, muitas vezes em tom menos estridente, por número crescente de outros desenvolvedores, bem como por startups que compram, vendem e mantêm bitcoins.

Gavin Andersen, colaborador próximo de Hearns e um dos mais veteranos participantes no desenvolvimento do software do bitcoin, disse que a disputa provavelmente causaria perturbações em curto prazo, mas que discorda da ideia de que ela prejudicará as perspectivas do bitcoin em longo prazo. Outros líderes do bitcoin expressaram sentimento semelhante, e os investidores parecem inclinados a acreditar neles: o preço do bitcoin na verdade subiu nos últimos meses, para cerca de US$ 430 por bitcoin.

Alguns dos aliados de Hearn na batalha esperam que o impasse possa ser rompido se as grandes companhias do bitcoin se unirem em torno de algo como o Bitcoin Classic, uma nova versão do software básico do bitcoin anunciada este mês, com o objetivo de expandir a capacidade da rede e ao mesmo tempo introduzir novos padrões de governança.

Mas Hearn está convencido de que já é tarde demais. Em passeios noturnos nos bosques perto de seu apartamento em Zurique, ele vem tentando descobrir em que ponto o bitcoin começou a dar errado, e o que isso significa para as crenças idealistas que o levaram ao processo.

"Jamais me ocorreu que a coisa pudesse simplesmente se desmantelar por as pessoas terem enlouquecido e por haver desacordos políticos fundamentais quanto aos objetivos do projeto", disse Hearn em entrevista por Skype, de seu apartamento. "Isso realmente abalou minha fé na humanidade".

PROPONENTE INICIAL
Hearn, 31, cresceu em Manchester, Inglaterra, onde dedicava suas horas de folga à música e escaladas. Ele foi um dos primeiros programadores sérios a se interessar pelo bitcoin, em abril de 2009, poucos meses depois que o misterioso criador da moeda virtual, conhecido como Satoshi Nakamoto, a apresentou ao mundo.

Na época, Hearn estava trabalhando em software de mapeamento para o Google, o emprego que mantinha desde que se formou em ciência da computação pela Universidade de Durham, na Inglaterra. Ele não tinha envolvimento profissional com finanças ou moedas, mas a crise financeira o convenceu de que moedas nacionais eram vulneráveis à política e a más decisões.

Quando uma busca na Web o conduziu ao primitivo site do bitcoin, ele imediatamente entrou em contato com Satoshi, o nome pelo qual o fundador era conhecido. "Tenho muitas questões", escreveu Hearn. "Mas é raro encontrar ideias verdadeiramente revolucionárias".

Como muitos dos programadores que se interessaram pela ideia nos primeiros dias, Hearn admirava o fato de que o sistema fosse governado por regras. Apenas 21 milhões de bitcoins seriam criados, e a distribuição dos novos bitcoins estava claramente determinada, e dependia de algoritmos matemáticos que não deixavam espaço para interferência humana.

Satoshi havia escrito o software que continha essas regras, mas depois de seu lançamento todo mundo podia ver o código e realizar mudanças. As pessoas que baixassem o software de fonte aberta essencialmente votavam em que mudanças aceitar com base na versão do software que escolhessem usar.

Se Satoshi propusesse mudanças que não as agradassem, bastava não baixar e não usar a nova versão, e todos estavam autorizados a propor alternativas.

O bitcoin, como muitos outros projetos de código aberto, era uma espécie de democracia sem líder –uma nova forma de governar o comportamento humano on-line. Para cada computador, um voto, e todos estavam autorizados a propor novas leis.

Danny Ghitis/The New York Times
-- PHOTO MOVED IN ADVANCE AND NOT FOR USE - ONLINE OR IN PRINT - BEFORE JAN. 17, 2016. -- A Bitcoin ATM in New York, Jan. 14, 2016. A nasty fight has torn apart the small brotherhood of Bitcoin developers worldwide and has exposed fundamental differences about the basic aims of the project, raising questions about the survival of the virtual currency. (Danny Ghitis/The New York Times) - XNYT43
Caixa-eletrônico de bitcoins em Nova York; rumos da moeda são incertos

Foi preciso algum tempo para que o bitcoin ganhasse espaço, mas, pelo final de 2010, quando Hearn começou a contribuir para o código, a moeda já havia começado a atrair um grupo entusiasmado de seguidores. A estrutura aparentemente sem líder e o funcionamento redondo do software conquistaram renome para o bitcoin entre os libertários e anarquistas, e em breve entre os empreendedores e os executivos de capital para empreendimentos, que se deixaram atrair pelas fundações transparentes e matemáticas do projeto.

Hearn se uniu a um grupo pequeno mas crescente de voluntários que trabalhavam com o software básico do bitcoin, de todos os quadrantes do planeta, os mais dedicados dos quais se tornaram conhecidos como "desenvolvedores chave".

Eles se encontraram pessoalmente apenas algumas vezes, mas conversavam on-line constantemente e trocavam e-mails para discutir possíveis mudanças. O líder do esforço, depois que Satoshi se afastou em 2011 (sem jamais revelar sua verdadeira identidade), era Andresen, um sujeito amável, pai de dois filhos e morador na região central de Massachusetts, que mantinha todos os envolvidos na mesma sintonia.

COMEÇO DA CRISE

A cordialidade começou a se desgastar no ano passado, por conta de algo que parecia ser um desdobramento positivo: o crescimento continuado no número de usuários e transações do bitcoin.

O problema era que, no começo, Satoshi havia estabelecido um limite para o número de transações que podia ser processado pela rede a cada 10 minutos. O limite tinha por objetivo assegurar que os computadores que hospedavam a rede e processavam as transações não se vissem sobrecarregados.

Mas Satoshi havia sugerido que o limite fosse temporário e, à medida que o número de transações executadas pela rede se aproximava mais e mais do limite, começaram a ocorrer atrasos e bloqueio de transações.

Quando Hearn começou a pressionar por mudança no software central do bitcoin a fim de permitir blocos maiores de dados de transações, ele enfrentou resistência. Gregory Maxwell, programador no geral autodidata que trabalhou para a Wikipedia e no desenvolvimento do navegador Mozilla, ambos projetos de código aberto, disse que seria mais difícil para computadores comuns processar blocos maiores de transações.

O resultado, alertou Maxwell, seria que o controle da rede fosse entregue a grandes empresas capazes de bancar computadores poderosos. Para Maxwell, uma lentidão maior nas transações parecia ser questão secundária diante da proteção do bitcoin contra fontes centralizadas de autoridade.

"Não está de maneira alguma claro para mim que o mundo terá, nas próximas décadas, uma segunda chance de fazer o que estamos fazendo, caso o bitcoin recaia naquela coisa de sempre", ele escreveu aos demais desenvolvedores.

Hearn rebateu que a questão técnica não era assim tão séria; computadores comuns em geral eram capazes de processar os blocos maiores de dados de transações. O mais importante, ele argumentou, era que o bitcoin precisava primeiro encontrar sucesso como rede de pagamento mais rápida e barata, a exemplo do PayPal ou Visa.

Se o bitcoin desejava competir com os sistemas comerciais de pagamentos, capazes de processar dezenas de milhares de transações por segundo, teria de abandonar o limite existente de menos de sete transações por segundo.

O debate era complicado pelos interesses financeiros das pessoas envolvidas. Maxwell e diversos de seus aliados estavam trabalhando em uma start-up de bitcoins chamada Blockstream, com US$ 21 milhões em capital arrecadados junto ao setor de capital para empreendimentos.

A start-up estava tentando viabilizar a retirada de algumas transações da rede do bitcoin, o que tornaria menos importante o limite de transações por segundo. Depois de sair do Google, Hearn começou a receber salário por seu trabalho com o bitcoin do grupo de capital para empreendimentos Andreessen Horowitz, um dos maiores partidários das start-ups de bitcoin no Vale do Silício.

À medida que o debate se tornava mais e mais acrimonioso, as amizades entre os desenvolvedores chave começaram a sofrer.

No passado, Andresen, o líder do projeto de software do bitcoin (que não é parente de Marc Andreessen da Andreessen Horowitz), teria intercedido para mediar o conflito. Andresen diz que, como "responsável pela manutenção", ele sempre buscou consenso mas, nas poucas ocasiões em que surgiram diferenças irreconciliáveis, assumiu a responsabilidade pela escolha, agindo como uma espécie de "ditador benevolente".

No entanto, Andresen abandonou seu envolvimento diário com o bitcoin em 2014 e transferiu a responsabilidade pela manutenção a outro voluntário do projeto, Wladimir van der Laan, um programador holandês, que disse que não pretendia seguir o exemplo de Andresen.

"Não posso decidir questões em nível de rede", afirmou Van der Laan via e-mail. "Ninguém é 'dono' do bitcoin. Ninguém pode decidir sobre o bitcoin como se ele fosse uma espécie de empresa."

Hearn e Andresen por fim decidiram, no terceiro trimestre de 2015, que a única maneira de continuar com o projeto era decidir por meio do voto das pessoas que usam o software do bitcoin. Eles desenvolveram uma nova versão do software central –em larga medida igual ao software atual, mas permitindo mais transações– e a chamaram Bitcoin XT. Se uma maioria clara de usuários do sistema baixasse o software, ele se tornaria a nova lei do mercado –o que é conhecido como "fork" [bifurcação], na terminologia do software de código aberto.

Bifurcações são parte comum do processo do software de código aberto, e no passado foram usadas para fazer pequenos reparos, aprovados por unanimidade, no bitcoin. Mas ninguém havia tentado uma bifurcação divisiva como a proposta por Hearn e Andresen, em larga medida pelo risco de que ela resultasse em duas redes de bitcoin incompatíveis e criasse questões sobre a legitimidade e o valor dos bitcoins existentes.

"E é isso. Aqui estamos. A comunidade está dividida e o bitcoin está passando por uma bifurcação", escreveu Hearn em 15 de agosto ao anunciar o novo software.

O lançamento do Bitcoin XT foi visto por Van der Laan e Maxwell como traição. Sim, a prática envolvida é democrática, mas eles afirmaram que as decisões sobre o software central deveriam caber aos especialistas técnicos –e não a ativistas e populistas.

A disputa tomou dimensões maiores quando um hacker habilidoso distribuiu o Bitkiller, um software destrutivo que buscava computadores que tivessem baixado o software Bitcoin XT e sobrecarregava-os de tráfego. Um provedor de acesso à internet em Long Island informou que ataques com o Bitkiller haviam derrubado sua rede no sul de Long Island por diversas horas.

A Coinbase, a maior empresa de bitcoin dos Estados Unidos, saiu completamente de rede por breves períodos, depois de declarar apoio ao XT. Não surpreende que isso tenha assustado muitos usuários do bitcoin e os dissuadido de usar o novo software ou declarar apoio a ele.

O hacker responsável pelo ataque, aparentemente radicado na Rússia, disse a Hearn em conversa on-line que alguém o havia "pago para matar o XT" –ainda que tenha se recusado a identificar o responsável.

No final do ano, Maxwell e seus aliados tentaram promover um compromisso. Organizaram reuniões em Montreal e Hong Kong para que os principais desenvolvedores conversassem sobre maneiras alternativas de ampliar o sistema do bitcoin. Andresen foi à primeira delas, e os aliados de Maxwell lá presentes anunciaram seu plano, mais gradual, para ampliar a capacidade da rede. Mas Andresen e Hearn concluíram que as recomendações propostas na reunião não seriam suficientes.

FUTURO INCERTO

A despeito da discórdia, Hearn não perdeu toda a fé nas ideias que embasam o bitcoin. A R3, startup de Nova York na qual ele aceitou emprego, está desenvolvendo redes semelhantes ao bitcoin para bancos, a fim de permitir formas mais fáceis e baratas de transacionar toda espécie de ativo.

A start-up quer tirar vantagem dos métodos menos centralizados de registro usados no bitcoin mas ainda assim permitir que haja alguém no comando, cuidando do software e administrando o acesso ao sistema.

Esse trabalho não tem a pureza do bitcoin, mas, depois de meses de noites mal dormidas e de preocupação sobre promessas traídas, disse Hearn, "quero voltar a estar em um ambiente profissional e conviver com pessoas centradas em alguma forma de realidade de negócios".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: