Folha de S. Paulo


Após desrespeitos a regras, Wikipédia vive batalha para salvar seus ideais

Adriano Vizoni-24.jun.2015/Folhapress
O fundador da Wikipedia, Jimmy Wales, durante palestra no evento Fronteiras do Pensamento, em São Paulo
O fundador da Wikipedia, Jimmy Wales, durante palestra no evento Fronteiras do Pensamento, em São Paulo

Poucos dos onipresentes usuários da Wikipédia tratam os verbetes da enciclopédia como verdade inquestionável. No entanto, dada a insistência da organização em dizer que suas páginas não podem ser compradas, muita gente encara os cerca de 35 milhões de verbetes disponíveis (na versão em inglês) como pelo menos neutros.

A reputação de neutralidade da organização, diferentemente do que acontece no caso da Suíça, se baseia em uma aversão idealista ao dinheiro. Em contraste com os bilionários que criaram alguns dos demais pilares da internet, os líderes da Wikipédia resistiram à tentação de usar o site para veicular publicidade.

Para o fundador da organização, Jimmy Wales, a missão era "dar a todas as pessoas acesso livre à soma de todo o conhecimento humano". E a ideia funcionou: o site, bancado majoritariamente por doações de baixo valor, está entre os 10 mais visitados do planeta.

Não existem regras firmes sobre o que pode ser publicado. Exceto uma: a regra fundadora de que "se você é pago para representar alguma coisa", nas palavras de Wales, "deve revelar o conflito de interesse e jamais editar artigos diretamente". Ou seja, se você discordar do teor de um artigo, azar seu.

A única opção é declarar seu interesse e apelar on-line à legião de editores voluntários da Wikipédia que tentam verificar informações usando fontes independentes.

PAGAMENTO

Mas a regra básica vem sendo desrespeitada. A Wikimedia Foundation, organização sem fins lucrativos que gere a Wikipédia, anunciou que, depois de uma operação de investigação, havia fechado 381 contas "fantoches", usadas por pessoas que são pagas para editar determinados temas, usualmente em favor das pessoas ou instituição tratadas no verbete.

Esses fantoches pareciam ter um mestre: um "grupo coordenado" cujos membros se faziam passar por "funcionários da Wikipédia" e se ofereciam para criar artigos pagos sobre pequenas empresas e indivíduos. Ao que se sabe, eles conseguiram pagamentos de um fotógrafo de casamentos e de um ex-participante do programa de TV "Britain's Got Talent", entre dezenas de outros.

Pode ser uma pequena trapaça apenas, mas coloca em destaque o ataque cada vez mais intenso aos princípios fundadores da Wikipédia. Será que a incorruptibilidade do site pode sobreviver aos imperativos comerciais?

Parece que não. A Wikipédia se tornou alvo do cada vez mais forte complexo industrial da informação, que fez da gestão de reputações on-line um setor econômico que movimenta bilhões de dólares ao ano. Buscas sobre qualquer termo no Google muitas vezes apresentam o verbete sobre ele na Wikipédia entre os primeiros retornos.

Para companhias e figuras conhecidas, esse é um poder que não pode ser confiado a idealistas amadores.

Grupos de relações públicas e empresas prometeram respeitar as regras da Wikipédia. Mas casos de manipulação não param de surgir. Em junho, surgiu a notícia de que funcionários da Sunshine Sachs, uma empresa norte-americana de relações públicas, haviam editado o verbete sobre uma cliente da empresa, Naomi Campbell, a fim de remover referências ao fracasso comercial de um disco que ela lançou em 1994.

A Sunshine afirmou que um funcionário não estava ciente das regras, mas que "no futuro as cumpriria rigorosamente".

RELAÇÕES PÚBLICAS

Os fatos podem ser sagrados, mas as alterações podem ser sutis. Em 2011, um computador cujo endereço eletrônico (IP) remetia à Coca-Cola foi usado para alterar a descrição da água Dasani, vendida pela empresa, de "engarrafada" para mineral. Mas a Dasani é produzida com água de torneira purificada. A Coca-Cola afirmou que não havia como ter certeza de que a mudança havia sido feita por um funcionário, acrescentando que ela "não segue os princípios de mídia social" da companhia.

O sistema da Wikipédia em geral funciona. Assuntos divisivos são bem monitorados. As páginas sobre o conflito entre israelenses e palestinos são fiscalizadas por militantes dos dois lados, o que resulta em artigos reduzidos a fatos sobre os quais a maioria dos observadores pode concordar. Isso resulta de discussões constantes e concentradas das quais os envolvidos no conflito real podem extrair esperança. Os verbetes sobre a mudança do clima, da mesma forma, atraem debate bem informado e fundado.

O problema é que o número de editores da Wikipédia está caindo. De acordo com as estatísticas do site, o número de editores ativos na versão em inglês da enciclopédia on-line era de 31 mil em julho de 2014, ante o pico de 51 mil em março de 2007.

Fatores tecnológicos ajudam a explicar a mudança. Editar pode ser trabalhoso, e é mais fácil fazê-lo com um mouse e teclado. À medida que as pessoas passam a usar os aparelhos móveis em escala cada vez maior, o número de mudanças que elas submetem cai. Outros motivos são decididamente humanos: os editores simplesmente não se conectam muito nos meses de verão. Em resposta, alguns editores criaram programas que buscam erros de digitação e outros, e instantaneamente revertem mudanças em páginas propensas a problemas repetidos. A Wikimedia Foundation está formando parcerias com instituições acadêmicas e busca facilitar o processo de edição.

Mas sem o trabalho de seus verificadores, a fé na informação fornecida pela Wikipédia se dissipará. A sobrevivência da organização depende de pessoas dispostas a continuar contribuindo gratuitamente para a soma do conhecimento humano. O medo é que as motivações de quem tem dinheiro perdurem mais do que o interesse dos editores desprovidos dele.

Mudanças lisonjeiras nas páginas de bilionários, empresas, ou participantes de concursos de talento podem passar despercebidas –e assim se tornar verdade, para muitos. Sem reforços, a regra básica da Wikipédia não se sustentará para sempre.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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