Folha de S. Paulo


Apple e outras empresas de tecnologia brigam com EUA sobre acesso a dados

Jim Wilson/The New York Times
Tim Cook, presidente-executivo da Apple, que recentemente contestou a prática de coletar dados de usuários da internet
Tim Cook, presidente-executivo da Apple, disse que atender o governo pode deixar os usuários vulneráveis a hackers

Em uma investigação envolvendo armas e drogas, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos obteve uma liminar algumas semanas atrás exigindo que a Apple entregasse às autoridades em tempo real mensagens de texto trocadas entre suspeitos que estavam usando iPhones.

A resposta da Apple: o sistema iMessage é cifrado, e a companhia não tinha como cumprir o mandado.

Funcionários do governo norte-americano vinham alertando há meses que esse tipo de impasse seria inevitável com a adoção de sistemas de cifração mais fortes por empresas como Apple e Google. O caso, que surgiu depois de diversos outros processos em que solicitações semelhantes foram rejeitadas, levou alguns funcionários importantes do Departamento da Justiça e do Birô Federal de Investigações (FBI) a defenderem a abertura de um processo contra a Apple, de acordo com atuais e antigos funcionários da Justiça e polícia norte-americanas.

Embora essa iniciativa tenha sido descartada por enquanto, o Departamento de Justiça está envolvido em disputa com outra empresa de tecnologia, a Microsoft.

O caso, que será levado na quarta-feira (9) a um tribunal de recursos de Nova York e está sendo acompanhado atentamente por executivos do setor e defensores das liberdades civis, começou quando a companhia se recusou a cumprir uma liminar, recebida em dezembro de 2013, determinando a entrega de e-mails de um suspeito de tráfico de drogas. A Microsoft informou que os funcionários federais teriam de obter uma liminar de um tribunal irlandês, porque os e-mails em questão estavam hospedados em servidores instalados em Dublin.

Os conflitos com a Apple e a Microsoft refletem a resistência intensificada das grandes empresas ao governo, na era pós-Edward Snowden. As companhias de tecnologia estão determinadas a mostrar que estão tentando proteger as informações dos consumidores.

"Tudo terminou emaranhado nas questões de Snowden e da privacidade", disse George Terwiliger III, um advogado que representa companhias de tecnologia e que, como funcionário do Departamento de Justiça duas décadas atrás, enfrentou o desafio de determinar como instalar escutas em redes de telefonia que estavam se digitalizando mais e mais.

O presidente Barack Obama encarregou funcionários da Casa Branca, do Departamento de Segurança Interna (DSI) e dos serviços de combate ao crimes cibernético, bem como o Departamento de Justiça, o FBI e os serviços de inteligência, de propor soluções -algumas legislativas, outras não- para a questão do acesso à tecnologia. Eles ainda estão negociando para resolver suas diferenças, de acordo com representantes da polícia, Justiça e governo.

Alguns funcionários da Justiça e do FBI estão frustrados por a Casa Branca não ter agido com mais rapidez ou com mais vigor na luta por influenciar a opinião pública, que as empresas de tecnologia parecem estar vencendo, disseram funcionários, falando sob a condição de que seus nomes não fossem mencionados porque não estão autorizados a discutir conversas privadas.

A Casa Branca, depois de meses de estudo, ainda não articulou uma resposta pública ao argumento de que uma vitória no caso da Microsoft ofereceria a governos autoritários como os da China e Rússia uma maneira de obter acesso a servidores de computador localizados nos Estados Unidos.

"Claramente, se o governo dos Estados Unidos vencer, isso abre as portas a outros governos para que ganhem acesso a centrais de processamento de dados norte-americanas", disse Brad Smith, o vice-presidente jurídico da Microsoft, em entrevista recente.

Companhias e organizações de defesa das liberdades civis vêm apresentando petições no processo, em geral expressando oposição aos poderes de vigilância do governo.

Há dois tipos de codificação em questão. O primeiro é a cifra de ponta a ponta, que a Apple usa em seu sistema iMessage e no FaceTime, seu sistema de videoconferência. Companhias como a Open Whisper Systems, que produz o Signal, e a WhatsApp adotaram esse tipo de cifra para apps separados, o que preocupa especialmente os investigadores de agências de combate ao terrorismo.

No caso da Apple, a cifração e decifração é realizada pelos celulares em cada ponta da conversa. A empresa não mantém cópias das mensagens a não ser que um dos participantes as suba para o iCloud, onde ela é armazenada sem cifra. (Na investigação sobre drogas e armas que esteve em questão recentemente, a Apple por fim entregou às autoridades algumas mensagens armazenadas no iCloud. Embora não fossem as mensagens em tempo real que o governo mais desejava, as autoridades disseram ver essa atitude como sinal de cooperação.)

O segundo tipo de codificação envolve software sofisticado de cifração instalado em celulares Android e Apple, que torna praticamente impossível a qualquer pessoa que não o usuário abrir o conteúdo armazenado -fotos, agenda, mensagens de texto salvas e mais- sem um código de acesso.

O FBI e as autoridades locais se opõem a essa tecnologia, afirmando que ela acarreta o risco de "deixá-los no escuro" quanto a comunicações entre terroristas e sobre outras atividades criminosas. As forças armadas dos Estados Unidos têm posição menos unida sobre a questão, a depender da missão.

Funcionários do governo dizem que um processo contra a Apple continua a ser possível, embora reconheçam que uma vitória seria difícil. Alguns deles objetam afirmando que uma disputa judicial dificultaria para as empresas chegar a uma solução de compromisso, dizem algumas dessas fontes. Elas acrescentaram que a Apple e outras empresas expressaram, em foro privado, a disposição de encontrar terreno de consenso.

A Apple se recusou a comentar sobre o caso para esta reportagem. Mas funcionários da empresa argumentaram publicamente que o acesso que o governo deseja pode ser explorado por hackers e colocar a privacidade em risco.

"Há outro ataque às nossas liberdades civis que estamos vendo ganhar força a cada dia -a batalha sobre os sistemas de cifração", disse Tim Cook, o presidente-executivo da companhia em uma conferência sobre privacidade eletrônica este ano. "Acreditamos que isso seja incrivelmente perigoso".

Ecoando os argumentos dos especialistas do setor, ele acrescentou que "se você deixar a chave sob o capacho para a polícia, o ladrão também pode encontrá-la". Se criminosos ou países "souberem que existe uma chave escondida em algum lugar, não desistirão até encontrá-la", concluiu.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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