Folha de S. Paulo


Para filmar longa com iPhone, diretor usou bicicleta e aplicativo

Shih-Ching Tsou/The New York Times
Mickey O’Hagan, Kitana Kiki Rodriguez, Radium Cheung e o diretor Sean Baker filmando
Mickey O'Hagan, Kitana Rodriguez, Radium Cheung e o diretor Sean Baker filmando "Tangerine"

Quando a comédia "Tangerine" estreou, em janeiro, no Festival Sundance de Cinema, foi recebida positivamente pelos críticos. Manohla Dargis escreveu, no "New York Times", que o filme tinha "uma bela direção". E Justin Chang, da revista "Variety", elogiou seu "look amplo, revigorantemente cinematográfico, com um brilho quase radiativo".

Assim, pode surpreender que o filme tenha sido gravado com um aparelho que muitos dos telespectadores carregavam no bolso ao assistir ao filme: um iPhone da Apple.

Não se trata do primeiro longa-metragem gravado assim. "And Uneasy Lies the Mind", thriller de 2014, foi o pioneiro —ao menos de acordo com o site do filme. Mas "Tangerine", mesmo antes de seu lançamento em circuito comercial na sexta-feira (10), já se tornou o mais comentado dos filmes de iPhone.

A história transcorre em Hollywood, na véspera do Natal, quando duas prostitutas transgênero (Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez) saem em busca de um namorado traidor. O look do filme é colorido, saturado, ousado e, a um só tempo, abarca a grandiosidade de Los Angeles e gera um senso de intimidade.

O roteirista e diretor, Sean Baker, cujos filmes independentes sempre giram em torno de protagonistas atípicos (como imigrantes ganeses ou estrelas pornô de Los Angeles), disse que a ideia de "Tangerine" veio de pensar em Hollywood como locação.

Em entrevista ao "New York Times", com o iPhone repousando na mesa diante dele, Baker explicou que "a ideia surgiu na esquina do Santa Monica Boulevard com a Highland Avenue, que serve como uma zona extraoficial de prostituição. Fica a menos de um quilômetro da minha casa".

Para Baker, a qualidade da câmera sempre foi importante. Ele rodou seu primeiro filme, "Four Letter Words" (2000), em película 35 milímetros. Mas o trabalho seguinte, "Take-Out", produzido com orçamento muito baixo, usava vídeo de definição regular. E ele não apreciou a perda de qualidade.

"Lembro-me daquele período", ele conta. "Shih-Ching Tsou, com quem codirigi 'Take-Out', dizia que eu devia parar de reclamar por estarmos rodando o filme em vídeo de definição regular, e que o importante era o conteúdo, não a câmera".

E Baker se encorajava pensando no trabalho de diretores como Lars von Trier, um dos criadores do movimento Dogma 95, que defendia um cinema de vanguarda mas não de alta tecnologia, e usou iluminação natural e vídeo de média definição para produzir "Os Idiotas".

Em "Starlet", filme que ele rodou em 2012, Baker usou uma câmera digital da Sony com lentes digitais anamórficas, para criar um estilo ensolarado, com cara de Califórnia dos anos 70. O filme foi rodado por US$ 235 mil. O orçamento de "Tangerine" foi de menos de metade desse valor, e por isso ele teve de buscar alternativas que envolvessem uma equipe de filmagem menor.

Uma inspiração foi "Red Hook Summer", dirigido por Spike Lee em 2012.Um dos personagens do filme, um cineasta iniciante, grava vídeos com um iPad, e os espectadores podem ver algumas das imagens. "Sempre que ele cortava para as imagens do iPad, eu ficava pensando como aquilo era interessante", disse Baker, definindo o resultado como um Dogma 95 de alta definição.

Ele estudou o site de vídeo Vimeo, e um canal específico que se concentra em curtas rodados com o iPhone. "Fiquei muito impressionado com o que vi", ele disse. "Pensei que aquele trabalho era capaz de se sustentar".

Usando o canal em questão, ele encontrou uma campanha no Kickstarter para a Moondog Labs, empresa que produz um adaptador que se encaixa na lente do iPhone e ajuda os cineastas a obter um resultado mais cinematográfico. "O aparelho nos permitia rodar do jeito que Sergio Leone rodava westerns", ele disse.

Baker procurou a empresa para descobrir se era possível obter os adaptadores, que ainda estavam em estágio de protótipo. Mencionou o nome de um de seus produtores executivos, Mark Duplass.

A Moondog lhe enviou três adaptadores. Ele os combinou ao Filmic Pro, um app de baixo custo que oferece diversas ferramentas úteis.

"A capacidade de controlar separadamente o balanço branco, o foco e a exposição eram fundamentos cruciais, que lhes permitiam obter bons pontos focais em cada tomada", disse Neil Barham, fundador e presidente-executivo da Filmic Pro, explicando como o app de sua empresa ajudou a equipe de "Tangerine".

Os cineastas compraram três iPhone 5 para a filmagem, mas usavam só dois simultaneamente, com Baker e seu diretor de câmera, Radium Cheng, registrando a imagem de ângulos diferentes. Usavam um sistema de Steadicam manual chamado Smoothie para as tomadas estabilizadas.

Magnolia Pictures/The New York Times
Kitana Kiki Rodriguez (esq.) e Mya Taylor em cena de
Kitana Kiki Rodriguez (esq.) e Mya Taylor em cena de "Tangerine", filmando inteiramente com iPhones

Para obter panorâmicas que teriam exigido uma dolly se o filme tivesse sido gravado com uma câmera tradicional, Baker usava sua bicicleta, com o iPhone em uma mão e a outra operando o guidão.

"A sensação era literalmente a mesma dos meus 12 anos, quando eu gravava filmes em VHS em Nova Jersey", ele disse. (Na pós-produção, um efeito película foi adicionado, e a cor das imagens registradas foi intensificada para criar um look saturado.)

O uso do iPhone oferecia ainda outros benefícios. Atores não profissionais, como suas duas protagonistas, em geral precisam de tempo para se acostumar à câmera. Mas porque todo mundo conhece o iPhone, o elenco se sentiu confortável desde o começo.

O que a Apple acha dos resultados? Um porta-voz se recusou a comentar, mas Baker diz que a companhia lhe mandou um iPhone 6 Plus grátis depois do Sundance, e em uma recente palestra em uma loja da Apple, os atores e produtores também ganharam iPhones. Assim, a equipe já tem equipamento para uma possível nova produção.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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