Folha de S. Paulo


Apple Watch é elegante, mas tem recursos demais, dizem críticos

Assistir Tim Cook na semana passada durante a apresentação do Apple Watch ao mundo foi quase comovente, porque ele parecia estar incorporando o seu predecessor. A caminhada de um lado a outro do palco, o movimento das mãos, a cadência da fala e o roteiro desavergonhadamente recheado de superlativos –"nossa missão era construir o melhor relógio do mundo": tudo isso fazia recordar Steve Jobs, morto em 2011.

É claro que faltam a Cook o histórico profissional, a história de vida e o talento de palco do co-fundador da Apple. Mas embora líderes deixem o palco mais cedo ou mais tarde, valores empresariais podem perdurar. Há décadas, a Apple vem se destacando no mundo dos negócios por três coisas: bom gosto, confiança e utilidade.

Não são palavras escritas em um quadro ou impressas em um balanço anual, mas valores que orientaram as decisões da Apple quanto a produtos e design. O Apple Watch reflete e interpreta esses valores –e a sua eficiência em fazê-lo será o teste de seu sucesso ou fracasso no mercado.

O bom gosto era essencial para Jobs. Era um termo que ele usava com frequência. Para ele, gosto era um valor e uma jornada, adquirido por meio de curiosidade, aprendizado e experiência de vida. Busque o melhor que sua cultura tem a oferecer e seu trabalho será enriquecido pelo gosto, quer você seja um programador de software, quer um escultor.

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Apple Watch, relógio inteligente da Apple
Apple Watch, relógio inteligente da Apple

Anos atrás, em sua casa em Palo Alto, Jobs apontou para as cadeiras de madeira de sua sala de estar, feitas por George Nakashima, marceneiro norte-americano de ascendência japonesa. Jobs explicou que Nakashima tinha uma combinação multicultural de experiência, estudo de arquitetura, viagens irrestritas pelo mundo e trabalho em diferentes culturas. Os projetos de Nakashima eram originais, segundo Jobs, porque ele tinha um senso distintivo de gosto, formado por sua experiência de vida.

A busca do bom gosto foi um valor que Jobs instilou na cultura empresarial da Apple, o que inclui um curso chamado "As Melhores Coisas", parte do programa interno de treinamento da empresa, a chamada Universidade Apple.

Pessoas têm gosto, mas produtos são desenhados e construídos por equipes formadas por essas pessoas. Jonathan Ive, que se tornou vice-presidente sênior de desenho industrial da Apple em 1997, pouco depois que Jobs retornou à empresa, é o marechal de campo do corpo de designers da companhia. E sob o comando de Cook, a Apple recrutou talentos importantes do design e moda, de companhias como a Burberry, Nike e Yves Saint Laurent.

"Tim Cook fez um trabalho excelente de retenção e recrutamento de pessoal essencial", disse David Yoffie, professor da escola de administração de empresas da Universidade Harvard.

Qual é o desempenho do Apple Watch no teste do bom gosto? O consenso é o de que ele constitui uma peça elegante de tecnologia pessoal, dados todos os recursos que oferece. A crítica, entre os designers externos, é que a Apple colocou coisas demais no produto.

De acordo com um antigo designer da Apple, o relógio tem sua origem no minúsculo iPod Nano Touch, lançado em 2010. As pessoas prendiam uma tira ao minúsculo player de mídia, e o usavam no pulso para ouvir música enquanto corriam.

A herança do iPod, porém, deu lugar a um conceito mais parecido com o do iPhone. "E é muito difícil tornar pequenas as coisas grandes", diz o ex-designer da Apple, que pediu que seu nome não fosse citado porque ainda tem contatos de negócios junto ao ex-empregador. "A sensação é de que o relógio foi desenhado por um comitê".

Ele também afirmou que a duração relativamente curta da bateria do relógio –os executivos da Apple disseram que a expectativa era de que os usuários recarregassem todos os dias– sugere que a equipe de design está em vantagem diante dos projetistas de hardware, agora. Recarregar o relógio diariamente, ele diz, é um compromisso aceito pelo pessoal do hardware.

No passado, o grupo do hardware muitas vezes prevalecia nessas disputas. Por exemplo, diz ele, os designers queriam fones de ouvido sem fio para o iPod. Mas isso teria consumido muita energia, requerendo recargas mais frequentes, o que levou ao abandono da ideia.

Outro antigo designer da Apple, Paul Mercer, concordou em que o Apple Watch oferece um grande número de recursos digitais. "Eles abriram muito o leque em termos dos recursos", afirmou.

Mas Mercer acrescentou que a "experiência de sistema", como por exemplo girar o botão lateral do relógio para fazer zoom e fazer scroll, é inovadora e "muito fluida". Mercer, designer de software, disse que o relógio "tem os traços que distinguem um produto clássico da Apple".

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Coroa digital serve para ampliar ou reduzir o tamanho da interface do relógio e para deslizar conteúdo
Coroa digital serve para ampliar ou reduzir o tamanho da interface do relógio e para deslizar conteúdo

PRIVACIDADE
Quanto ao aspecto da confiança, o Apple Watch deve se beneficiar da boa vontade acumulada dos consumidores. As pessoas gostam dos produtos da Apple, para dizer o mínimo. Os produtos que a companhia oferece têm reputação merecida por parecerem intuitivos e personalizados, para os usuários. Os produtos Apple respeitam o indivíduo. As pessoas confiam na companhia. Muitas vezes dão a ela o benefício da dúvida quando ocorre um tropeço, confiando em que as coisas serão corrigidas rapidamente, como no recente caso de fotos de celebridades hackeadas do sistema iCloud.

O Apple Watch, entre outras coisas, é um poderoso aparelho de monitoração de saúde, que recolherá grande volume de dados pessoais, se os usuários assim optarem. Isso causa preocupações de privacidade, e a questão da confiança passa a existir em contexto diferente para a Apple.

Ao tratar dessa preocupação, Cook observou que a Apple tem um modelo de negócios diferente de companhias cuja vida financeira depende da publicidade, como o Google e o Facebook. Quando o produto é grátis, como é costume dizer, você é o produto. Mas não é assim na Apple. A empresa deve suas vastas vendas e imensa riqueza empresarial a produtos que as pessoas podem segurar nas mãos, e pelos quais os clientes pagam caro.

Mas os dados de saúde são especialmente privativos, e a forma pela qual serão usados dependerá não só da Apple mas de desenvolvedores externos de software que produzirem apps de saúde para os aparelhos da Apple. As normas recentemente revisadas que a empresa divulgou para apps de saúde dispõem que os desenvolvedores não podem usar os dados para fins de marketing e que eles não podem ser compartilhados com terceiros sem o consentimento do usuários.

Mas com que rigor a Apple policiará os fornecedores externos, quando mais desenvolvedores, produzindo mais apps, significarão mais razões para que as pessoas adquiram seus produtos?

"Creio que a Apple certamente está ciente das questões de privacidade relacionadas aos dados de saúde", disse Marc Rotenberg, diretor executivo do Electronic Privacy Information Center. "Mas o verdadeiro teste será determinar se ela imporá firmemente essas normas de forma a cumprir seus compromissos com relação à privacidade".

UTILIDADE

O valor da utilidade, no contexto da Apple, significou redefinir categorias inteiras de produtos e a forma pela qual as pessoas os usam. Foi essa a história com os players de mídia (iPod), smartphones (iPhone) e tablets (iPad).

As questões de utilidade que cercam o relógio da Apple vêm em diversas dimensões. Será que ele não é parecido demais com um iPhone usado no pulso? O perigo para a Apple, aqui, é seu passado sucesso. Os recursos de comunicação e notificação do Apple Watch parecem bacanas. Com isso, as pessoas agora andarão por aí olhando para os pulsos e não para seus celulares. Isso representa grande avanço em termos de utilidade?

Há também a questão do número de pessoas que encontrarão utilidade no aparelho. Será que os recursos de monitoração da saúde, quando combinados a outras ofertas do Apple Watch, bastarão para convencer grande número de consumidores a comprá-lo? Boa parte desse público, presumivelmente, já usa uma pulseira eletrônica de acompanhamento do desempenho físico, como a Fitbit ou a Jawbone.

E será que a Apple não está limitando o mercado do Apple Watch com sua estratégia? Sob o plano atual, o Apple Watch só funciona com o iPhone. Mas cerca de 85% dos smartphones do planeta usam o sistema operacional Google Android, de acordo com a IDC.

Existe um precedente, aqui. O iPod decolou no mercado depois que a Apple mudou de rumo e decidiu permitir que ele se sincronizasse a computadores equipados com o sistema operacional Microsoft Windows, e não só com computadores Apple. O Apple Watch, disse Michael Cusumano, professor da Escola Sloan de Administração de Empresas, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), "crescerá apenas o tanto que a fatia de mercado do iPhone permitir. Uma oportunidade desperdiçada, em minha opinião".

Cusumano e Yoffie são co-autores de um livro que sairá no segundo trimestre de 2015, "Strategy Rules: Five Timeless Lessons from Bill Gates, Andy Grove, and Steve Jobs", baseado em seu estudo sobre esses três pioneiros do setor de tecnologia e sobre os desafios que seus sucessores enfrentam. A conclusão deles, diz Yoffie, é a de que os sucessores encontraram sucesso e conseguiram manter e em alguns casos até expandir os negócios existentes. "Mas enfrentaram dificuldades para promover mudança revolucionária", como a conseguida por seus predecessores, segundo Yoffie. "O Apple Watch parece se enquadrar a esse modelo".

Veremos. Vale a pena recordar que o iPod, iPhone e iPad foram todos recebidos com ceticismo inicial. O Apple Watch busca ser o próximo produto nessa linhagem, derrotando os céticos e propiciando imensas recompensas para a Apple. Não se sabe ao certo quanto resta da magia da Apple. Como outros, Mercer, antigo designer de software na empresa, tem questões sobre o Apple Watch e seu destino. As respostas que mais importam começarão a surgir no ano que vem, quando o produto chegar às lojas. "Mal posso esperar para comprar o meu", disse Mercer.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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