Folha de S. Paulo


Janaína Rueda, a 'Dona Onça', já mudou a merenda de 1,5 mi crianças

Miro/Folhapress
Janaina Rueda, a Dona Onça
Janaina Rueda, a Dona Onça

Janaina Rueda chega ao restaurante no térreo do edifício Copan, a onda concreta de 32 andares projetada por Oscar Niemeyer no centro de São Paulo, às 19h de uma terça-feira. Está fazendo as contas. "Vou ter que aumentar o preço da sobremesa", diz ela, que fechou o balancete do primeiro mês do seu quarto negócio no bairro.

O salão em que ela acaba de entrar é o primeiro dos restaurantes que a família Rueda toca no centro, e foi aberto dez anos atrás. O lugar se chama Bar da Dona Onça porque esse é o apelido da dona, como atestam as pintas do maior felino brasileiro, tatuadas em seu ombro.

Ao lado de Jefferson Rueda, eleito o melhor chef da cidade no último "O Melhor de São Paulo", da Folha, a chef e empresária é sócia do Dona Onça, da Casa do Porco, em que Jefferson faz alta gastronomia com carne suína, e do Hot Pork, que serve cachorros-quentes feitos com ingredientes nobres e sem artificialidades. "A gente atende a umas 50 mil pessoas por mês."

A última empreitada, do meio de 2018, foi a Sorveteria do Centro. O lugar é uma portinha numa esquina em que prostitutas batem ponto, e vende um sorvete de máquina que ela chama de "soft". Mas os ingredientes são naturais e há sabores como jabuticaba e bacon, chocolate e "porcopoca" (pipoca de porco, um torresmo). É essa sobremesa que teve o preço reajustado: foi de R$ 12 a R$ 14 no dia em que ela conversou com a Serafina.

Corta para dez anos atrás, no mesmo lugar, que então era um imóvel vazio. Quando Janaina decidiu abrir um restaurante no centro, em 2007, Walério Araújo já era uma celebridade local. O pernambucano de Lajedo fazia roupas estrambólicas para artistas como Elke Maravilha e Sabrina Sato, e promovia desfiles mais concorridos do que as festas da SPFW.

"Daí um dia apareceu Janaina na minha loja, no Copan, dizendo que queria abrir um restaurante aqui", diz Walério, vestindo uma regata que deixa ver o nome de oito ex-namorados tatuados no alto das costas (quando o relacionamento termina, o nome é riscado).

O conselho dele para Rueda foi: "Bicha, vai embora". Foi um dos poucos vindos do compadre que ela preferiu não ouvir.

"Eu achava que ninguém ia vir, que o centro era só coisa de moderno", diz ele. Vânia Toledo, fotógrafa que na década de 1970 lançou um livro de nus masculinos, com retratos de Caetano Veloso e Ney Matogrosso, chega à mesa onde Walério está. Senta, ouve que aquilo é uma entrevista sobre o centro e diz: "Sabe o que eu gosto daqui? Ouço o sino da igreja [da Consolação], me sinto no interior de Minas".

Em 2008 o restaurante abriu. E foi um sucesso instantâneo. "A Veja deu e daí acabou. Uma movimentação louca, umas filas loucas." Até abrir o restaurante, ela nunca tinha cozinhado profissionalmente.

"Mulher, nova, na cozinha, casada com um grande chef. Tinha um monte de coisa para dizerem." No ano que vem, a Publifolha lança um livro com receitas e a história do restaurante, assinado por Janaina e pela jornalista e chef Luciana Bianchi.

Machismo

Houve percalços. "Imagina, eu trabalhava só com homem na cozinha", diz ela, com seu sotaque paulistano.

Nos primeiros meses do restaurante, ralhou com um funcionário. Ele virou o cabo da frigideira, de metal, para o fogo. Quando Janaina foi pegar, queimou a mão. "O Jefferson teve que me segurar. Eu queria matar." O funcionário foi advertido e suspenso.

Desde então, a casa permanece com espera de até duas horas no fim de semana, e o cardápio é praticamente o mesmo: arroz de galinhada, feijoada, torresmo e outros pratos que ela define como "cozinha brasileira sexy".

"É duro mudar. Se eu fizer muita coisa, apanho. Tirei uma musse uma vez e tive que colocar correndo de volta, de tanto berro que escutei." Mas a evolução dela na cozinha trouxe pequenas mudanças, constatadas na galinhada.

"Primeiro eu tirei o osso. Depois, o ovo frito que eu colocava em cima foi substituído por uma gema curada, quando aprendi a curar gema."

Janaina não se considera uma chef. Refere-se a si mesma como cozinheira. Até porque é uma profissão adquirida: ela vendeu beirutes de porta em porta e foi hostess em matinês de boates como o Clube Nation, um dos templos dos clubbers da década de 1990.

"Desde a infância eu bebi", ela brinca. "Comecei com vinho e aos 16 anos migrei para o uísque."

Antes de guinar para a cozinha, foi sommelière de uma empresa francesa. Foi quando se sentou no restaurante Pomodori, no Itaim.

"Era muito, muito chique", lembra ela. E foi amor à primeira garfada. Dona Onça foi para cima do chef, Jefferson Rueda. "Ele não me dava nenhuma bola", diz. Até que deu, casaram e tiveram dois filhos e quatro estabelecimentos juntos.

Os dois trabalham em conjunto a ponto de um jornal paranaense chamar o casal de "A Bela e a Fera da gastronomia". Há machismo em ser classificada pela aparência enquanto o marido ganha apelido pelo talento? "Ná, tudo bem. Eu gosto de ser bonita."

Publicidade, não

O casal participou do Masterchef duas vezes, ensinando os participantes a cozinhar. "É uma delícia!".

Também já quase apresentaram um reality gastronômico no SBT, mas as negociações empacaram porque os dois se recusam a fazer merchandising de produtos industrializados que não usam na sua cozinha.

"Não adianta, não dá. Não sou eu", diz Janaina, que nos últimos anos fez só uma publicidade: para uma marca de carros que emprestou um veículo.

Ela ensina a evitar o arrependimento de olhar pra uma cifra que vai recusar: "Olha o contrato de 50 mil e pensa que são 50 reais. E vai em frente".

Em janeiro de 2015, já mais confortável no papel de chef e com o restaurante estável, bateu na porta da administração da Fundação Casa de Itaquaquecetuba. Pediu para dar aula de cozinha para os menores infratores.

Uma vez por mês, chegava com carne, panelas, batatas e facas debaixo do braço.

No fim do ano, o juiz concedeu uma liminar para que todos fossem almoçar no restaurante dela depois da formatura. Dois alunos acabaram ficando.

Ambos com 17 anos na época, foram contratados como menores aprendizes. Cada um deles ganhava R$ 1.600 por mês —mais do que os R$ 845 que então ganhava a mãe de um deles, merendeira da rede pública.

As merendeiras logo renderiam um novo projeto. Desde 2016, Janaina começou a ensinar centenas dessas profissionais a mudar a alimentação de um milhão e meio de alunos da rede pública.

O então secretário de Estado da Educação, José Renato Nalini, era cliente do bar e convidou Janaina para dar pitacos na merenda das escolas públicas.

"Super na inocência, eles me chamaram para pegar os 'pouches' e fazer receitas com eles", ela ri, passados dois anos.

"Pouches" são bolsas de comida pré-feitas e seladas a vácuo. A cozinheira refogou a carne pré-cozida com cebola e louro. "Ruiiiim não fica. Não é péssimo, mas não é a mesma coisa que comida. É igual a Whiskas [comida de gato]. É ração."

A carne é fraca

Entrou na segunda reunião dizendo: "Então, preciso mudar os produtos. Tudo". Contou com o apoio de funcionários da nutrição, que já haviam separado amostras de comida in natura para Janaina ajudar a escolher. Foi proposto que a comida "de verdade" fosse servida uma ou duas vezes por semana.

"Mas eu disse: 'Ah, não, ou vai mudar tudo ou eu não vou fazer'."

Conseguiu carta branca.

"Nós sabemos que o maior tempero é o amor. Ver isso acontecer é, portanto, algo que nos dá muita alegria", disse Nalini. Mas o amor não foi o único tempero desse novo prato: "Foi cheio de idas e vindas e voltas e vai e vem", diz Janaina.

Enquanto lutava pelo seu ponto de vista, estourou a operação Carne Fraca, com denúncias de carne adulterada com papelão. "O escândalo veio a calhar. A política hoje pensa três vezes antes de fazer algo desleal."

Começou a faltar moela no mercado. As quantidades compradas pela Secretaria da Educação são tão grandes que criam uma bolsa de valores do insumo: podem fazer um ingrediente saltar de preço da noite para o dia, como aconteceu com a moela. E Janaina teve de aprender a lidar com esse poder.

"Hoje, são dez receitas de pratos por semana, para não depender de um insumo só. Ou quebra o mercado." São mais de 40 fornecedores para alimentar o milhão e meio de alunos cujo menu ela define.

Na outra ponta do processo está Antonio Vieira. O jovem de 13 anos é aluno do sexto ano na Escola Estadual Maria José, na Bela Vista, onde Janaina estudou quando jovem. E come da sua merenda todos os dias.

"Merenda, não. Antes, era merenda. Agora, é comida. A não ser de sexta, que tem macarrão com sardinha, daí é zoado, não curto muito", avalia o rapaz.

A sardinha enlatada e o molho de tomate de pacote são os únicos alimentos processados que ficaram na despensa, para caso de emergência.

Lixo, lixo, lixo

Os entornos do Copan mudaram muito na última década.

O prédio, que antes sediava comércios locais, agora tem restaurantes que atraem turistas. Ela diz que o tíquete (gasto médio por pessoa) na Onça é R$ 86.

"Acho que é justo R$ 83, R$ 90, R$ 100. Porque está tudo muito caro. Quanto mais eu saio para fazer pesquisa de mercado, mais eu fico assustada e mais eu não aumento os meus preços."

"Não é baratinho. Mas hoje, uma terça-feira, tinha fila de espera no almoço", diz ela, enquanto os funcionários da Onça terminam de jantar ao seu redor.

Um de seus filhos passa no fundo do restaurante, e ela grita: "Tá comendo o quê?". O garoto está de dieta.

Ela tem um conceito para contra-atacar quem aponta gentrificação do centro. "Você acha que a gente gentrifica a [boate] Love Story? Nããão! Eu acho que a gente 'gentefica'. O que é 'genteficar'? É o contrário da gentrificação, é conviver, trazer para perto."

Até porque, para ela, o centro não melhorou em alguns aspectos. "Nasci aqui e nunca vi tanto lixo. Lixo, lixo, lixo. Sujeira. Vou a pé até a Santa Ifigênia para dar aula para as merendeiras. Eu enxerguei o centro hoje como abandonado."

Onça e Leopardos

O rosto que recebe a clientela no Bar da Dona Onça pode ser familiar para quem tem mais de 40 anos.

É Eloína dos Leopardos, a artista de 72 anos que trouxe para o Brasil nos anos 1970 um show em que homens com corpos bonitos dançavam, enquanto se despiam até o fim. Eram os Leopardos que viraram seu sobrenome.

A fila para ver o show dos Leopardos dobrava quarteirões no Rio.

Passaram pela plateia de Eloína estrelas como Cazuza, Madonna e Liza Minnelli, e ela fez uma fortuna que foi devidamente desfeita nas décadas seguintes. No começo dos anos 2000, ela se viu em um prédio de quatro andares no centro de São Paulo, em busca de um recomeço.

Nos primeiros anos, fez sungas para revender.

A chef reconheceu a artista quando trombou com ela na rua. Janaina perguntou: "Você não quer trabalhar no Dona Onça?". Ela respondeu: "Eu quero, mas eu vou fazer o quê?". Ouviu que seria "uma grande presença".

Ficaria sentada na porta. Seria a hostess. Há anos está todos os dias sentada numa mesa na porta do restaurante.

Quando é necessário, Eloína consegue interceder e colocar celebridades, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em uma mesa especial.

As duas estão no meio de três meses de curso de gastronomia para 70 travestis e mulheres transexuais que são detentas no presídio do Belenzinho, em São Paulo.

"Eu consegui autorização para entrar com perucas, esmaltes, roupas. A gente vai fazer a formatura com todas lindas", diz Eloína, que também é travesti.

No mês passado, os Rueda abriram seu apartamento novo, a 28 passos do restaurante, para uma festa.

O lugar será a casa da família, que manterá o apartamento que possui no Copan como espaço gastronômico e cultural. A sala, que se debruça sobre a avenida São Luís, é do tamanho de um restaurante.

Aos poucos, chegam os convidados, muitos dos quais nunca se viram: Regina Volpato, apresentadora do Mulheres, programa mais longevo da TV Gazeta; Maranhão, dono do boteco que leva seu nome; Thiago Castanho, chef do Remanso do Bosque, restaurante premiado de Belém do Pará, e Manoel Beato, sommelier do grupo Fasano.

Maneki-neko vaginal

As pessoas se juntam em duplas para encher taças com uma garrafa de vinho Château Lascombes de 18 litros. "Custa uns R$ 50 mil", comenta uma das convidadas.

Janaina está na cozinha, conversando com uma roda de convidados que muda de quando em quando, enquanto prepara uma feijoada num tacho enorme.

A decoração conta com um Maneki-neko, o boneco de gato que chama a sorte com sua pata levantada. A versão dos Rueda tem a dimensão de um bebê de seis meses e uma vagina em tamanho natural rasgando seu ventre.

Jefferson tem medo que alguém queira roubar a obra de arte. "Eu vou é chumbar, assim fica assim."

Às 21h, alguém começa a dedilhar um violão.

Enquanto o grosso da festa come sua feijoada com tartare de banana e pratos de couve crua, temperada com sal, limão e azeite, ela está sentada numa poltrona no canto, cantando: "Ê-ê, ele não é de nada. Ô-iá essa cara amarrada. É só um jeito de viver na pior".


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