Folha de S. Paulo


Serafina visita fábrica da Hermès na França e desvenda história da marca

Emiliano Capozoli
Hermes
Hermes

Este texto foi originalmente publicado na Serafina de dezembro de 2008

A história começa no Brasil e termina no closet e no corpo de milhares de pessoas em todo o mundo. É aqui que são produzidos os fios de seda que embarcarão para Lyon, na França, para serem transformados no tecido dos famosos "carrés" da Hermès, um dos itens mais cobiçados da moda.

"Carré", em francês, quer dizer "quadrado". Na Hermès, a palavra designa os lenços de seda de 90 cm2, estampados com formas coloridas, que a grife vem produzindo regularmente há mais de 70 anos. Cada um dos "carrés" tem um tema específico e também as iniciais do desenhista que criou a estampa, como se fosse um quadro ou uma gravura de 65 gramas que as pessoas pudessem portar no pescoço, na cabeça, amarrado na bolsa, entre outros usos.

Mais de 2.500 "carrés" já foram criados desde 1937, quando surgiu o primeiro exemplar, estampado com o desenho de um jogo. A partir de maio do próximo ano, eles estarão entre os destaques da primeira loja da Hermès no Brasil, no shopping Cidade Jardim, em São Paulo.

Com a nova loja brasileira, é como se o "carré" fizesse a volta completa de seu sistema produtivo. Todos os fios de seda utilizados pela Hermès são feitos no Brasil, pela Fiação de Seda Bratac S/A, a partir de criações de bichos-da-seda no interior de São Paulo e do Paraná. "Fazemos a matéria-prima da matéria-prima", diz o gerente comercial da empresa, Shigueru Taniguti Jr., para explicar que a Bratac produz apenas os fios, e não a seda propriamente dita, que será criada em Lyon. Ele também conta que fiscais da Hermès visitam a fábrica uma vez por ano, para conferir a produção. "Eles têm um controle de qualidade muito rígido", afirma Taniguti Jr.

De cada casulo do bicho-da-seda, podem ser retirados 1.500 m de fio de seda. Para um "carré" de 90 cm 2, são necessários os fios de 300 casulos num total de 450 km. O preço de um "carré" em Paris é 250 Euros. Os "carrés" de 90 cm2 são os mais célebres e produzidos em maior número, mas existem variações, como o "Gavroche", de 45 cm2, inspirado no lenço masculino, e o "Losange", na forma de um losango, criado pelo estilista Martin Margiela em 2001, quando ele era diretor de criação da Hermès.

A HISTÓRIA DE UM "CARRÉ"

Desde o século 17, Lyon é reconhecida pela excelência de sua produção de seda e suas técnicas de impressão desse tecido. É nessa cidade que fica a fábrica de dois andares da marca onde são feitos os "carrés" -e que Serafina visitou, para acompanhar a criação dos famosos lenços.

A história de um "carré" começa com a seleção, por um comitê, de 24 desenhos que serão lançados em duas coleções diferentes- 12 no verão e 12 no inverno. Os protótipos são encaminhados ao ateliê de design de Lyon para serem produzidos os clichês da impressão. Para cada área de cor empregada no desenho original, é necessário fazer um clichê diferente. Um lenço tem, em média, 20 cores, mas elas podem chegar a 42.

Enquanto isso, no departamento de gravação, estão sendo preparados os chassis metálicos cobertos por uma gaze de tergal bem fino ou de poliéster, sobre os quais será aplicado um produto fotossensível. Os chassis funcionarão como placas fotográficas, quando os clichês forem neles ajustados e expostos a uma luz ultravioleta. O resultado é o "negativo" que será usado na impressão _um para cada área de cor.

Feitos os "negativos", eles serão levados às mesas de impressão. São dois grandes aparelhos, de 150 m2 de comprimento, cada um, que esticam a seda branca, como se fosse um papel, para que ela possa ser "carimbada" com os clichês coloridos do desenho. O processo lembra a impressão de páginas de um livro de arte.

Na mesa de 150 m2 cabem exatamente 150 "carrés" de 90 cm2. Uma vez impressa, a enorme faixa de tecido é esticada para uma primeira secagem sobre essa mesa gigante. No processo final, o tecido será levado a um aparelho que fixa as cores a 103oC por uma hora e a outros, que vão lavá-lo e secá-lo. Só então, os "carrés" serão cortados e terão suas bordas costuradas à mão.

O que impressiona na fabricação dos "carrés" é essa atividade artesanal e minuciosa. Tudo parece ser feito sem muita pressa na fábrica da Hermès. "É um trabalho de vigilância constante", diz Pierre Colomb, responsável pelo ateliê de desenhos e clichês. Apesar disso, mais de 1 milhão de "carrés" são produzidos por ano na fábrica de Lyon.

SELA DE LUXO

Os "carrés" já apareceram enfeitando várias celebridades poderosas, como a rainha Elisabeth 2ª, Jacqueline Kennedy, Grace Kelly e Hillary Clinton. A paixão dos governantes pela Hermès, aliás, é coisa antiga _remonta ao século 19, quando a marca ainda era apenas uma criadora de selas de luxo. Conta-se que coroações e festividades da nobreza européia tinham suas datas adiadas até que o ateliê pudesse terminar a confecção das carruagens.

Criada em 1837, por Thierry Hermès, a marca só se expandiu para além de seu nicho anterior (a selaria) no final do século 19 e início do 20, quando começou a produzir malas, bolsas e casacos de couro. Hoje, seus negócios abrangem roupas, bolsas, acessórios, perfumes, relógios, cristais e objetos de cama e mesa, entre outros itens. O prêt-à-porter é desenhado desde 2003 pelo estilista Jean-Paul Gaultier.

A Hermès nunca abandonou, porém, a produção de selaria. Um ateliê especial, no sexto andar da loja do Faubourg Saint Honoré, nº 24, em Paris, produz à mão, mensalmente, cerca de 35 selas. Cada uma custa, em média, 4.000 Euros. Se for um projeto especial, o preço dobra. Um dos últimos pedidos especiais foi feito pelo rei do Marrocos para presentear o seu filho. "A selaria faz parte do passado da Hermès e não poderia ser abandonada, além disso, é um mercado que existe", diz Laurent Goblet, responsável pelo ateliê.

Talvez esteja aí o segredo das grandes marcas de luxo: ir rumo ao futuro, mas sem negar a sua própria história.


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