Folha de S. Paulo


"A Lady Gaga criou um novo público para mim", diz Marina Abramovic

Henrique Gendre/Henrique Gendre
Marina Abramovic
Marina Abramovic

Este texto foi publicado originalmente na Serafina de Março de 2012

Marina Abramovic é uma iugoslava que vive em Nova York e se instalou no Brasil na virada do ano. Artista performática mais prestigiada do mundo, ficou oito dias sozinha em uma casa em Iporanga, no interior de São Paulo. Sozinha, com 29 litros de leite. "O leite absorve a radiação do seu corpo e reforça o sistema imunológico", diz, explicando a dieta de limpeza radical.

Também foi se encontrar com xamãs em Curitiba. Diz que três dias com os curandeiros fizeram mais conserto que três anos de psicanálise.

O Brasil se tornou uma espécie de refúgio para a artista de 65 anos, nascida em Belgrado, na ex-Iugoslávia. Além de passar dias à base de leite, em 40 anos de performances, Marina já cortou a estrela símbolo do comunismo na própria barriga, gritou até perder a voz, escovou o cabelo até fazer sangrar seu couro cabeludo, deitou nua numa cruz de gelo, desmaiou em outra estrela feita de fogo e ofereceu o corpo para intervenções do público, que podia até apontar uma arma para sua cabeça.

"A dor sempre foi a matéria-prima do artista. A diferença, no meu caso, é que uso o meu corpo para isso. A ideia é mostrar que, num minuto, você sente dor e, no outro, passou. Se posso fazer isso com a minha vida, o público também pode."

Marina chega atrasada ao nosso encontro, acompanhada por Luciana Brito, amiga, anfitriã e galerista que a representa no Brasil. Num dos dias mais abafados do verão, vem de calça e blusa pretas e sandália de zebrinha. "Hoje devia ser meu dia de folga", desabafa. Ela veio produzir aqui as peças de sua nova mostra, "O Método Abramovic", que entra em cartaz no dia 21 de março, no Pavilhão de Arte Contemporânea de Milão.

Pedras brasileiras são a base da exposição, que tem como atrativo cabeças da artista feitas de cera e incrustadas com quartzos, turmalinas e lápis-lazúlis. Já o tal "Método Abramovic" consiste num experimento em que grupos de pessoas vão passar por diversas situações com diferentes minerais enquanto são "assistidos" pelo resto do público.

A visita ao Brasil representa um fim e um recomeço. Veio se energizar depois de uma maratona de quase dois anos que envolveu uma retrospectiva de sua obra no MoMA de Nova York e um documentário sobre sua carreira, que acaba de estrear no festival de Sundance.

MARINA ME FEZ CHORAR

A retrospectiva, em 2010, foi a primeira de uma artista performática e bateu recorde de visitação (de um artista vivo): 850 mil espectadores. A "obra" principal era a própria Marina, sentada numa mesa sem se mexer e encarando estranhos até eles chorarem ou se entediarem.

Tanta gente chorou que as fotos dos manteigas derretidas foram reunidas no site "Marina me Fez Chorar" junto com o tempo que cada um levou para desabar -de 2 a 391 minutos. "Não me pergunte por que eles choravam. Pergunte a eles. Só sei que, às vezes, via tanta dor em algumas pessoas que eu mesma chorava, por dentro."

Gente famosa também sentou na frente da artista, mas ela nem sempre percebia. Alguns eram seus amigos, como Lou Reed, Matthew Barney e Björk. "Mas, um dia, eu estava encarando uma mulher e pensei: 'Parece muito a Sharon Stone, mas não pode ser'." Era. Michael Stipe, do R.E.M., Pati Smith e Isabella Rossellini passaram por lá. O ator James Franco aproveitou uma folga nas sofridas filmagens do filme "127 Horas" para sentar com Marina. E até Lady Gaga quis fazer parte da performance. Desistiu quando viu a fila.

Mas a cantora, que entende tudo de performance e autopromoção, decidiu anunciar no Twitter que estava no museu e arrastou centenas de adolescentes para lá. "Sou muito grata a Lady Gaga. Criou um novo público para mim." Marina e Gaga ainda não se conheceram, mas já trocaram e-mails com um objetivo que obviamente não conseguiram realizar: um almoço sem paparazzi.

"Nos EUA e acho que também no Brasil, as pessoas estão muito ligadas nessa coisa de 'jet set'. Eu venho do comunismo, onde todos devem ser iguais. Então, para mim, o guarda do museu que visitava a exposição no dia de folga era tão importante quanto o James Franco."

Durante a mostra, Marina perdeu dez quilos, com a rotina de 77 dias e sete horas diárias sem comer, beber e fazer xixi. "Fiz um buraco na cadeira, caso precisasse, mas não usei."

A mostra e a história da artista deram origem ao documentário "A Artista Está Presente", lançado em Sundance e exibido no Festival de Berlim. No evento americano, Marina promoveu a estreia com uma festa muda: falar era proibido, os convidados estavam restritos a sorrir, se abraçar e beber champanhe. "Robert Redford só foi à minha festa. Disse que foi a melhor porque não tinha que falar nem dar entrevista para ninguém."

"O que você acha de festas silenciosas?", pergunta Marina. É a primeira de muitas indagações do tipo. A "queridinha dos incestuosos mundos da moda, arte e sociedade", segundo o "New York Times", parece pouco egocêntrica para uma artista: quer saber se estou num relacionamento, se sou parecida com meu irmão e elogia minhas sobrancelhas.

Pede para a maquiadora engrossar as dela enquanto se prepara para as fotos da Serafina. "Vamos torcer para eu ficar bonita. Quem sabe vocês me conseguem um marido brasileiro?", ri Marina. "Brincadeira, não sou do tipo 'pra casar'."

Quer posar com a mão em frente ao rosto. Primeiro, diz não usar acessórios ("Pensei que vocês iam me oferecer pérolas, brilhantes... As brasileiras usam muito ouro!"), depois se encanta com as bijuterias desenhadas pela artista Christine Yufon e desfila com elas. Marina quer ter controle sobre tudo. Recentemente, decidiu opinar até sobre a sua morte.

TRÊS FUNERAIS

A crise aconteceu depois de participar do velório da amiga e escritora Susan Sontag. "O funeral não refletia o espírito dela." Marina saiu de lá direto para um advogado. E chamou o diretor americano Robert Wilson para dirigir a peça "Vida e Morte de Marina Abramovic", que tem o ator Willem Dafoe e o cantor Antony Hegarty, do grupo Antony and the Johnsons, no elenco. No enredo, o funeral da artista acontece em Belgrado, Amsterdã e Nova York. Há três caixões, mas ninguém sabe onde está o corpo.

Formada na Academia de Belas Artes de Belgrado, Marina diz que nem sabia da existência da arte performática quando começou a fazer a sua.

Se apaixonou loucamente pelo artista alemão Ulay, com quem dividiu performances e uma van por 12 anos. Em uma das experiências mais famosas, o casal pedia que o público se espremesse por uma apertada passagem formada pelos corpos dos dois -pelados.

Terminaram o relacionamento com uma performance na muralha da China. Caminharam 2.500 quilômetros cada um para então dizer tchau no meio do caminho. "A gente podia dar um telefonema e falar: 'Acabou'. Mas fizemos uma longa caminhada. As pessoas dedicam muito tempo para construir uma relação e nenhum para terminá-la."

O conto chinês representou também a iniciação de Marina no mundo fashionista. Tinha 40 anos e estava sozinha. "Me sentia gorda, feia e infeliz. Então, comprei minhas primeiras roupas do [estilista japonês Yohji] Yamamoto e me senti melhor instantaneamente."

Quase uma garota-propaganda da Givenchy, Marina é amiga de Riccardo Tisci, estilista da grife que fornece roupas exclusivas para as pré-estreias da artista.

Numa foto polêmica, a dupla posa como se a diva amamentasse o estilista. "Eu disse para Riccardo: 'A moda sempre se alimentou da arte. Você é a moda. Eu sou a arte. Chupe meus peitos'."

Marina não fuma, não bebe e não usa drogas. "Sou a pessoa mais chata que você pode conhecer. Mas adoro piadas sujas." Em vez de alucinógenos, o recurso preferido da artista para se entorpecer é passar fome.

"Depois de três dias só tomando água, toda a sua energia vai para a gordura e você atinge o estado de consciência mais incrível. Com o passar dos dias sem comer, você fica cada vez mais 'alto', enquanto, com a droga, você fica uma merda no dia seguinte."

LIQUIDAÇÃO

É fim de tarde e Marina tem fome. Os restaurantes estão fechados e acabamos, por sugestão da artista Paula Garcia, sua parceira nos projetos brasileiros, nos aventurando num almoço no shopping Iguatemi.

A performance exclusiva da artista acontece na frente da loja Marc Jacobs: "Setenta por cento de desconto? Vamos entrar!" Para logo se diluir. A promoção era restrita a uma única e tímida prateleira. E ela deixa a loja no mesmo minuto.

Não tem tempo a perder. Um vidente croata já havia avisado a então moça, aos 25, que ela não faria sucesso antes dos 50 -idade com que ganhou o Leão de Ouro na Bienal de Veneza com uma performance que lembrava a guerra na Iugoslávia.

Apesar de já ter cumprido esse e outros objetivos -"Passei 40 anos tentando fazer a arte performática sair do alternativo e virar 'mainstream'. Acho que consegui"-, Marina ainda tem um tanto de planos.

O primeiro é o seu instituto, em Nova York, que vai se dedicar só a projetos de longa duração. "Meu sonho é pedir para o David Lynch fazer um filme de 300 horas. A vida é tão curta, a arte tem que ser mais longa..." A ideia é que esteja pronto em dois anos.

Outro é a ocupação artística de uma antiga fábrica de geladeiras em Montenegro, também na ex-Iugoslávia -um complexo de 150 mil m2 onde trabalhavam 8.000 pessoas.

"Queremos produzir cinema, teatro e todo tipo de arte e criar empregos para os filhos dessas pessoas", sonha Marina sobre o centro, que deve demorar dez anos para ser inaugurado. "É um projeto de vida. Quero que seja meu legado."

Na hora de ir embora, Marina joga um beijinho no ar e logo promete voltar. "Os Estados Unidos são o lugar menos interessante para se produzir. Lá é bom para se exibir. Mas o artista tem que funcionar em uma sociedade perturbada, é o oxigênio dele."

Quer trazer sua vida e morte em forma de peça ao Brasil em 2013, planeja montar uma nova exposição com pedras locais para rodar a América Latina em 2014 e pensa em quem sabe até ter uma casa por aqui. Provisória, é claro.

"Não dá para viver num lugar sossegado, a natureza não precisa da arte, é perfeita sem a gente."


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