Folha de S. Paulo


"Tem que ser feliz, seja com pessoas ou coleções de selos", diz Woody Allen

Este texto foi originalmente publicado na Serafina de maio de 2009

"As pessoas vão entender esse filme no seu país?", pergunta Woody Allen, antes mesmo que eu me sente para a nossa entrevista. Estamos em Nova York, dois dias depois da pré-estreia de "Whatever Works", traduzido como "Tudo Pode Dar Certo" pela distribuidora brasileira, que promete botá-lo em cartaz em novembro, cinco meses depois da estreia nos EUA, no dia 19 de junho. De perto, o cineasta parece ainda mais franzino que no cinema. Mede 1,65 m. Não deve pesar mais que 50 quilos. Levanta-se para me dar a mão e perguntar meu nome, que esquece imediatamente. Está todo arrumadinho, de camisa amarelo-bebê de mangas compridas enfiada dentro da calça bege de linho com pregas e presa por um cinto de couro caramelo, mesmo tom de seu sapato mocassim. Vestido assim, levou suas duas filhas pequenas ao colégio pouco antes do nosso encontro, como faz todos os dias.

O protagonista de "Tudo Pode Dar Certo", Boris Yellnikov, é quase uma caricatura de seu criador. Interpretado por Larry David, é um gênio da física, bem sucedido e casado com uma mulher igualmente bem sucedida, que um dia percebe que não é feliz. Tenta se suicidar e falha, então abre mão de tudo o que se considera admirável a seu respeito. Boris é pessimista em relação à raça humana e aconselha que, já que todo mundo vai terminar mal, quem conseguir ser feliz de alguma maneira, seja como for, deve aproveitar a chance. Daí o título original.

Comento que o tema é perigoso para ele, cujas crenças quase espelham as de seu personagem. Ele confessa que teme a reação das pessoas, mas que nunca deixa de fazer o que quer por causa disso. Sua voz é mais anasalada do que nos filmes, encompridando as sílabas finais e os "enes" em particular. É gentilíssimo, presta muita atenção às perguntas e não faz lembrar em nada os personagens algo aflitos que interpreta. Fala devagar, projetando o torso em minha direção quase como para ter certeza de que o entendo bem. "O personagem é mais exagerado do que eu, mas penso mesmo todas aquelas coisas horríveis que ele fala", conta. "Não há nada errado com nada, desde que ninguém se machuque. Vivemos numa sociedade que quer que você se comporte 'apropriadamente'. Ninguém tem o direito de dizer o que é certo ou errado. Importante é tentar ser feliz, seja com uma pessoa, um cachorro ou uma coleção de selos. A vida já é uma jornada bem dura."

Annie Leibovitz
Woody Allen
Woody Allen

CARTILHA NADA SUAVE

Ele usa os mesmos óculos de aros pretos de sempre, mas os cabelos estão mais brancos e mais ralos no cocoruto. Faz só três anos que não trabalha como ator em um de seus filmes. O último foi "Scoop - O Grande Furo", de 2006, com?Scarlett Johansson. Noto que ele chacoalha um pouco a cabeça entre uma pergunta e outra, e isso me deixa triste. Por quanto tempo ainda poderemos usufruir do imenso luxo de ter um filme novo do Woody Allen para ver por ano?

Allan Stewart Konigsberg, nome real do cineasta de 73 anos, é um homem metódico e cheio de regras. "Neurótico mesmo, não precisa usar eufemismos", assume.

Algumas de suas manias relacionadas à carreira:

a) "Nunca leio nada sobre mim ou sobre meu trabalho. Não leio uma resenha ou uma entrevista há mais de 35 anos."

b) "Nunca assisto a meus filmes depois que estão concluídos."

c) "Não me importo com a reação das pessoas nem com os números da bilheteria, já que não tenho participação nos lucros. Quando as pessoas assistem ou criticam um filme, já estou trabalhando no próximo."

d) "Para mim, a graça toda é ter uma idéia, escolher o elenco, trabalhar com o diretor de arte para fazer os cenários, o figurino, fotografar e fazer o filme. Quando acabou, fim."

e) "Não tenho um preferido, mas me lembro de alguns com mais carinho, como 'A Rosa Púrpura do Cairo', 'Zelig' e 'Maridos e Esposas'. São sempre memórias das filmagens, nunca do filme em si."

Woody Allen almoça todos os dias ao meio-dia e meia, em casa, por isso as entrevistas têm que terminar pontualmente ao meio-dia. Depois das 15h, busca as filhas no colégio. Leva a sério suas obrigações de pai, mas faz piada com a rotina: "Imaginei que, nessa altura da vida, estaria dormindo tarde todos os dias, uma das vantagens desse ramo. Mas, com crianças, não dá". Seus filmes são rodados no verão norte-americano, entre fim de junho e fim de setembro, durante as férias escolares, quando sua família pode acompanhá-lo nas locações. Essa regra é essencial quando a locação não é a cidade onde nasceu, cresceu, sempre viveu e que serviu de cenário e às vezes personagem de seus mais de 40 longas-metragens.

VICKY CRISTINA BRASILEIRA

Aos poucos, ele revela o interesse inicial em relação ao público brasileiro. O Brasil anda na mira porque existe a possibilidade de que ele filme no país em 2010. "Minha irmã, Letty Aronson, que lida com a pré-produção, teve uma ou duas conversas iniciais com alguém do Brasil", afirma. "Minha mulher e minhas filhas estão torcendo."

A receita para fazer de um país a locação e parte da história de um filme de Woody Allen é simples na teoria: basta juntar o dinheiro para a produção e fazer o convite ao diretor. "Vicky Cristina Barcelona", por exemplo, custou US$ 15 milhões para ser produzido, mesmo orçamento de "Tudo Pode Dar Certo", filmado em Manhattan, e "Match Point - Ponto Final", rodado na Inglaterra. "Sonho de Cassandra", filmado na França, saiu por 13 milhões de euros. "Scoop - O Grande Furo" foi rodado na Inglaterra e por uma relativa bagatela: US$ 4 milhões.

Outra grande facilidade é que Allen produz um filme por ano, quase sem falhas, desde 1971, e não se programa para mais de uma história de cada vez. Agora, por exemplo, sabe apenas que vai filmar em Londres a partir de julho, com Naomi Watts, Freida Pinto, Antonio Banderas, Josh Brolin e Anthony Hopkins. A atriz principal ainda não foi anunciada. Seria Nicole Kidman, mas ela pediu para sair da produção. "O filme atual é mais pitoresco, mais cômico. O próximo será uma comédia dramática, como 'Vicky Cristina'. Terá uma história séria e engraçada, como a de 'Hannah e Suas Irmãs'", adianta.

Na prática, além do dinheiro da produção, há outras questões. "Eu teria que fazer uma pausa e me perguntar se conseguiria criar uma história que funcionasse no Brasil." E o desafio teria de ser interessante o suficiente para contrabalançar seu horror de voar e de ficar longe de casa por longos períodos. Talvez a curiosidade conte a nosso favor. "Nunca estive ao Sul do Rio Grande", confessa, referindo-se ao rio na fronteira dos EUA com o México. Talvez a literatura possa pesar na balança: "Sou um grande fã de Machado de Assis", reafirma. "Os personagens dos romances dele se parecem comigo. Machado é moderno e charmoso, não tem nada ultrapassado no que ele escreve."

MARIDOS E ENTEADAS

Se filmar em outro país requer uma equação complicada, rodar "Tudo Pode Dar Certo", seu primeiro filme em Nova York desde "Melinda e Melinda", de 2004, foi um acidente. "Havia a ameaça de uma greve de atores e fui obrigado a filmar rapidamente, não pude esperar o verão. Então, teve que ser em Nova York por causa da escola das crianças."

As crianças que ele menciona toda hora são as duas filhas adotivas de seu terceiro casamento, com Soon-Yi Previn, em 1997. Para quem andou distraído nos últimos anos, ela é filha adotiva de sua ex-namorada Mia Farrow, atriz com quem fez 12 filmes e teve três filhos, dois adotivos e um biológico. Entre 1980 e 1992, tempo que ficaram juntos, ele ajudou a criar Soon-Yi. Ela tem hoje 35 anos -tinha sete quando Woody a conheceu e 19 quando virou amante do ex-padrasto. O escândalo do namoro do cineasta com a irmã de seus filhos veio a público na época de "Maridos e Esposas", sua última colaboração com Mia Farrow.

Mas de volta a "Tudo Pode Dar Certo": para filmar rapidamente, Allen decidiu usar um roteiro pronto desde os anos 70, engavetado quando o comediante que faria o papel principal morreu. Era Zero Mostel, o Max Bialystock do filme "Os Produtores", de 1968. "Fiz mudanças aqui e ali para atualizar a trama, mas a história permaneceu a mesma", disse o diretor, que nunca considerou pegar o papel principal para si, como acontece em muitos de seus filmes. "Eu não conseguiria falar aquelas coisas tão pessimistas e arrogantes sem despertar muita raiva nas pessoas."

E bote pessimista nisso. Outra amostra, retirada de nossa conversa: "Mesmo que os islâmicos adorassem os judeus, mesmo que ninguém mais passasse fome, ainda viveríamos em um mundo cheio de ansiedade e sofrimento. Não existe Deus, nada parece ter nenhum sentido, a vida é tão cruel e aleatória. O que a gente veio fazer aqui?"

E aí, no fundo desse poço de amargura, aparece o Woody Allen que me fez (e quem sabe também o leitor) dar as melhores risadas recentes em uma poltrona de cinema: "Mas, por favor, não me deixe estragar sua tarde em Nova York".

Ludovic Carème
Woody Allen
Woody Allen

CAPA

Ô, da poltrona!
por SÉRGIO DÁVILA de Nova York

Na manhã de uma sexta-feira recente, de folga em Nova York, saltei cedo da cama com um bom motivo: telefonar para Woody Allen. O diretor falaria comigo por 20 minutos, por ocasião do lançamento de "Tudo Pode Dar Certo" nos EUA. Era nosso segundo "encontro" telefônico -o primeiro aconteceu em 2005, eu em São Paulo, ele em Londres, na véspera de "Match Point - Ponto Final" estrear no Brasil.

Naquela ocasião, falamos de Carlos Gomes, Walter Salles e Machado de Assis, não necessariamente nessa ordem. (Ele usou óperas do compositor na trilha, o título de um filme do diretor de "Central do Brasil" aparecia numa cena e Allen acabara de ler "Memórias Póstumas de Brás Cubas".)

Agora, eu representava o mais perigoso tipo de repórter: o que já tem uma tese.

A minha era a de que, quando não atua, o que é cada vez mais frequente, o veterano diretor divide os papéis principais de seus filmes em alter egos e musas. Há um número maior dos primeiros e apenas três (quatro, se levarmos em conta Louise Lasser, ainda da pré-história alleniana) das segundas.

De cara, ele derrubou minha teoria.

"Não é verdade", disse, para então chutar a canela. "O jornalismo é uma profissão com uma profusão de pessoas sem imaginação, então, se um escreve que eu tenho alter egos e musas, milhares de outros escreverão o mesmo, porque não têm mais nada a fazer, e isso se tornará algo em que as pessoas acreditam."

Penso na autora da reportagem das páginas anteriores me contando como o encontro dela com o diretor dias antes num hotel de Nova York havia sido prazeroso, como ele se mostrou simpático e interessado em suas questões, como estourou feliz o tempo originalmente dedicado a falar com ela.

É outro o Woody Allen do telefonema. Pergunto se, ao escolher atores como Larry David, no último filme, ou Jason Biggs em "Igual a Tudo na Vida", ou Kenneth Branagh em "Celebridades", e dar a eles falas que escreveu de um personagem neurótico como ele, não seria justo pensar que o espectador se lembrará dele ou, pelo menos, do que pensa ser uma versão dele.

"Não", responde. "Acho que é mais porque, por anos, eu sempre interpretei o personagem principal em meus filmes. Então, quando parei de fazer isso, jornalistas criaram essa sua teoria." Nessa manhã de sexta-feira, Woody Allen não tem a melhor opinião sobre jornalistas. Ainda mais jornalistas com uma tese. Insisto: a Scarlett Johansson de "Scoop" não é uma versão feminina dele?

"Hmm, essa pode ser uma observação inteligente, terei de pensar sobre ela", responde. Então se solta: "Num filme como 'Vicky Cristina Barcelona', por exemplo, eu me identifico com Rebecca Hall, porque o personagem de Scarlett é aventureiro demais para mim, corajoso demais, experimentador demais, e, na vida real, eu sou muito mais conservador, como Rebecca".

Pergunto quem interpreta o melhor Woody Allen. "Todos os que você citou são ótimos", diz ele, soltando-se um pouco mais. "John Cusack [de "Tiros na Broadway"] é um ator maravilhoso, Jason Biggs também, eram atores maravilhosos antes de eu os conhecer e continuaram assim depois de trabalhar comigo." Ele os "ensinou" como ser ele diante das câmeras? "Foi muito pouco o que eu tive de falar a eles, aliás, na maior parte das vezes, procuro não falar nada a ninguém para não atrapalhar."

Larry David e Woody têm biografias parecidas em certos aspectos: ambos escreveram para a TV, foram comediantes de palco. Isso foi um fator na escolha? "Não, poderia ser ele ou Brad Pitt. Quer dizer, Larry pareceu mais lógico para mim, embora ele faça um tipo de comédia diferente da minha. É mais parecido com seu personagem em 'Curb Your Enthusiasm' [série americana de TV], e esse é um papel que eu nunca poderia interpretar."

Por quê? "Não é meu tipo de comédia. No meu tipo de comédia, eu sou muito mais a vítima." Depois de 20 minutos, Woody Allen agradece e se despede. Com ele, vai a minha tese.


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