Folha de S. Paulo


"Sou um poço de inseguranças mas sei brigar", diz ator Robert Downey Jr

Annie Leibovitz
Robert Downey Jr.
Robert Downey Jr.

Este texto foi originalmente publicado na Serafina de outubro de 2009

Robert Downey Jr. carrega o tempo todo, onde quer que esteja, uma malinha preta, dura, do tamanho de uma caixa de sapatos. O que fica lá dentro é um mistério, não há entrevista em que alguém não pergunte o que ele tanto carrega, e, cada vez, ele dá uma resposta diferente. Já vi sair lá de dentro um pacote de lenços umedecidos antibacterianos que ele usa para limpar as mãos e o rosto entre um aperto de mão e outro, ou entre um café e outro. Outros jornalistas já me aconselharam a nunca perguntar sobre a malinha, pois é onde guarda seus cigarros e seus charutos, único hábito que ainda não conseguiu largar.

E é com a tal malinha embaixo do braço que ele está atravessando o país junto com os atores Jamie Foxx e Michelle Monaghan, com quem filma a comédia "Due Date", do mesmo time de "Se Beber, Não Case". Vai ser uma reunião dupla para o ator, que está em "O Solista", com estreia programada para o dia 6 de novembro no Brasil, também ao lado de Jamie Foxx. E com Michelle Monaghan, filmou "Kiss Kiss Bang Bang", em 2005.

E foi com a tal malinha que chegou à primeira das três entrevistas que fiz com ele, em Nova York, dias depois de completar 43 anos (nasceu dia 4 de abril de 1965). Perguntei o que tinha dentro dela, ele disse "meu kit salvação". Comentei que parecia pequena para tanto poder. Ele respondeu que o que estava ali seria consumido nas próximas quatro ou seis horas, tempo máximo que ele consegue ficar sem ter que voltar ao seu quarto no hotel, telefonar para a mulher ou implorar que alguém busque alguma coisa em algum lugar pelo amor de Deus.

A ocasião era o lançamento de "Homem de Ferro", o filme que finalmente trouxe seu nome de volta ao "dream team" de Hollywood. Mas ele falou comigo antes de saber disso. O filme não havia entrado em cartaz, os críticos não tinham visto e Robert Downey Jr. não tinha a menor ideia de que aquela seria a última entrevista que daria com todo o tempo do mundo, sem ter que driblar outros milhões de convites e compromissos. Era todo cuidado e um poço de gratidão, além do charme e do bom humor que não perdeu nunca, nem quando aparecia bem mais nos cadernos policiais do que nos de cultura e entretenimento. Dizia que o mais emocionante de tudo para ele era ter conseguido o papel.

O TESTE

Os executivos lá no alto da cadeia alimentícia não queriam grandes riscos, e contratar um ex-viciado de mais de 40 anos para ser o mocinho da história não parecia uma boa ideia. Jon Favreau peitou a escolha até certo ponto, mas chegou a pesquisar outras opções quando Robert Downey Jr. disse que faria qualquer coisa pelo papel. "Qualquer coisa?", perguntou o diretor. "Qualquer coisa", respondeu o ator. "Então por que não um teste?", sugeriu o cineasta. Ele fez, Favreau dirigiu, os executivos assistiram, adoraram, perderam o medo, assinaram o contrato. E foi assim, do jeito mais básico, que tudo começou. Ou melhor, que tudo voltou a começar.

Robert Downey Jr. entrou no cinema em 1970, aos cinco anos, em um longa-metragem independente dirigido por seu pai, Robert Downey Sr. Chamava-se "Pound", e ele fazia um dos cachorros abandonados esperando para ser adotados em um abrigo para animais. Aos 20, participou do elenco fixo do "Saturday Night Live".

Aos 21, mudou-se para Los Angeles para testar a sorte. No ano seguinte, fez o papel de um viciado em drogas no filme "Abaixo de Zero", baseado em um livro de Bret Easton Ellis, que o transformou no "garoto-que-vai-ser-alguma- coisa". Cinco anos depois, em 1992, a profecia se confirmava. Foi quando estreou "Chaplin", a cinebiografia do ator e diretor inglês que lhe rendeu uma indicação para o Oscar de melhor ator.

Perdeu para Al Pacino, por "Perfume de Mulher". Nos anos seguintes, seu nome era mais associado ao que fazia nas horas de folga, como dirigir seu Porsche pelado enquanto jogava ratos imaginários pela janela em plena Sunset Boulevard em 1996, ou desmaiar na cama de uma criança na casa de um estranho que morava no seu bairro (mesmo ano), ou pelas várias passagens pela prisão e por clínicas de reabilitação, muito antes dos Ben Afflecks e das Paris Hiltons da vida banalizarem as duas coisas. O golpe fatal aconteceu em 2002, enquanto ensaiava uma volta com um papel fixo na série "Ally McBeal" e foi preso em um hotel em Palm Springs com drogas e uma fantasia de Mulher Maravilha. Perdeu a fé de Hollywood, a namorada ambiciosa (a atriz Sarah Jessica Parker, com quem morou durante sete anos na década de 1980), a primeira mulher e mãe de seu filho, Indio, a atriz Deborah Falconer, os convites para papéis principais em filmes grandes e caros. E aí virou o "acidente-fatal-esperando-para-acontecer" da época, o mesmo lugar que Amy Winehouse ocupa hoje em dia.

"Homem de Ferro" tinha tudo para dar certo. Os fãs de quadrinhos adoraram a escolha do ator, o filme tinha bom roteiro, bom diretor, bom elenco, boa trilha sonora. Robert torcia para o sucesso, mas estava preparado para uma eventual decepção. "Achei que 'Kiss Kiss Bang Bang' ia ser minha grande volta por cima. Mas ninguém deu a mínima", disse na primeira entrevista. "Estou em estado de semipânico e sou um poço de inseguranças. Mas sou esperto e sei brigar, então que venha o superestrelato ou o superdesprezo. Só não pode vir o cachorro louco." Cachorro louco é como ele chama seu lado perverso, que gosta de drogas, bebidas, armas, prostitutas e hotéis baratos.

O CASO DA MALA

Quatro meses, carro novo -um Bentley preto, presente da Marvel-, uma casa maior e outro filme depois, voo a Los Angeles para a segunda entrevista com ele, que dessa vez promove a comédia "Trovão Tropical", dirigida por Ben Stiller. Ele chega carregando a malinha preta, com uma calça verde exército boca de sino e uma camiseta branca escrita "working class hero" (algo como herói da classe trabalhadora) em cinza bem clarinho. Reconheço o charme, o bom humor e a malinha preta, mas vejo outro Robert Downey Jr. Ele sabe disso, sabe que eu sei e sabe que eu sei que ele sabe. E não tem uma piada a perder. "Não preciso mais de nada do que está nessa mala, hoje em dia carrego só para me lembrar dos tempos em que eu ainda não era um sucesso. Você se lembra dessa época? Parece inacreditável para você também?"

A terceira entrevista acontece de novo em Los Angeles. Dessa vez, a ocasião é o lançamento de "O Solista", um filme bem menor que os dois anteriores, e infinitamente mais "low profile" do que os dois próximos, "Sherlock Holmes", e "Homem de Ferro 2", que devem estrear em 2010. Robert Downey Jr. continua Robert Downey Jr., mas agora está tão absolutamente calmo em relação ao seu sucesso que até relaxa o jeito de se vestir. Calça preta com riscas de giz, camiseta branca, casaco com zíper e gorro azul de algodão, All Star branco de cano alto. E a malinha preta, claro.

"Esse filme foi uma boa lição de humildade", conta. "Como ator, é bom lembrar que nem todos os trabalhos interessantes serão grandes produções. E foi bom voltar a conviver com pessoas que não conseguem fazer a vida funcionar. Os loucos e drogados são exatamente como qualquer um de nós, em circunstâncias um pouco diferentes."

"O Solista" é todo baseado em fatos reais. Nele, Downey vive Steve Lopez, colunista do jornal "Los Angeles Times" que, em 2005, conhece um morador de rua (interpretado por Jamie Foxx) que é também um músico de talento, mas sofre de esquizofrenia. E escreve uma série de colunas sobre seus encontros com Nathaniel Ayers, o maluquete.

O diretor Joe Wright, de "Atonement", fez questão de usar como locação Skid Row, a parte mais violenta e pobre de Los Angeles, onde a história real aconteceu. "Fui reconhecido por um ex-presidiário que não tinha ideia de que eu era ator. Minha credibilidade entre os marginais continua intacta, por sinal. Eles não devem ter visto 'Homem de Ferro'", brinca.

Aproveito o clima de descontração e o momento introspectivo para pedir o impossível. Que ele abra a maldita malinha e mostre o que tem dentro. "O tempo da entrevista já acabou", anuncia a assistente. Ele se levanta e ameaça ir embora, mas volta e diz para a moça "ainda tem uma coisa que ela quer saber". Senta-se ao meu lado, abre a malinha e vai tirando os objetos um por um, explicando o que cada coisa é. Chaves de casa, chave do carro, garrafa de água, iPod, carteira, blackberry -"o Jude Law me deu esse celular supercaro de presente"-, um único charuto, nenhum cigarro, acendedor de charuto. E um saco preto que ele tira rápido e diz: "Isso não é da sua conta". O mistério continua.


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