Folha de S. Paulo


"Acadêmicos aceitam os 'pobrinhos', mas não o popular", diz Bethânia

Este texto foi originalmente publicado na Serafina de setembro de 2008

No presépio de Maria Bethânia, além do Menino Jesus, de Maria, de José, da vaca e do burro, os três Reis Magos são as figuras de Dorival Caymmi, Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, cada um com sua coroinha. É inútil especular sobre os significados desses três reis. O maior cancionista, o maior prosador e o maior poeta? É isso, mas não é nada disso. O mar e a "simplicidade sofisticada" para Caymmi, o Brasil profundo e o rigor construtivo para Guimarães e a perturbação e a multiplicidade para Pessoa? Também é isso, mas também não é. Não sei o quê. Mas Bethânia é presépio com tudo no lugar e é presépio com tudo fora do lugar. Um presépio inusitado e sereno. Complexa, brasileira, rigorosa, religiosa, sagaz, articulada e simples. E foi a essa multiplicidade que ela se referiu quando recebeu, aos 62 anos, no último dia 9, o primeiro prêmio Shell dedicado a um intérprete e não a um compositor, falando o poema de um dos seus três Reis Magos, Fernando Pessoa: "Sim, sei bem que nunca serei alguém; sei, de sobra, que nunca terei uma obra".

Sua resposta imediata à minha pergunta sobre o sentido do poema ao receber o prêmio é pelo fato de ela não considerar a sua, como a de Caetano ou a de Chico, uma obra. Sabe que seu estilo de interpretação é, ao mesmo tempo, composição e, segundo ela, até dramaturgia: é Bethânia que escolhe as canções, o tema, os textos, as imagens, a presença no palco. Isso também é compor. Mas não chega a pensar que essa composição atinja o alcance de uma assinatura completa. Diz que, na verdade, tem "alguma" assinatura e que uma intérprete jamais pode receber um prêmio sozinha. É comum os premiados atribuírem o prêmio a uma equipe, mas, em muitos casos, é só demagogia. No caso de Bethânia, não. "Uma cantora precisa de", ela diz. Mas, pergunto, será que alguém tem uma obra? Ter uma obra não é ter algo acabado? Ela concorda. Diz que é isso mesmo e que ninguém tem uma obra.

Bethânia não é, está sendo e uma obra já foi. Nesse sentido, é o durante o que mais importa. Quando menciono a ela uma das frases de outro dos reis, Guimarães Rosa, que ela leu em um de seus CDs, "felicidade se acha é em horinhas de descuido", então ela diz que essa é mesmo a idéia do durante.

"A gente tem uma espécie de policial dentro de si, sempre controlando tudo. É muito raro conseguir se distrair. Eu consigo isso no palco e, de vez em quando, na vida. Parece que as pessoas perderam a noção do tempo."

O palco é a horinha de descuido de Bethânia, mesmo que nele tudo seja exatamente cultivado. "Não consigo simplesmente chegar da rua e subir no palco. Não me lembro de um único show, em 43 anos de carreira, em que eu não tenha passado algumas horas no palco antes de me apresentar. Preciso adquirir uma intimidade com ele; é um lugar que se entrega a mim e ao qual eu me entrego." De resto, a distração é difícil. Ela diz que vive sua vida toda totalmente entregue ao trabalho. "Até dormindo, tudo é trabalho. Preciso de milhares de anos de análise para conseguir passar um minuto sem trabalhar. Sou muito exigente e, mesmo assim, gosto das coisas frescas. Preciso do risco e do desafio. Senão as coisas ficam naquele corpo meio mole."

Seu olhar tem paz e inquietude. "Tenho uma inquietação parecida com a de Fernando Pessoa. No palco sou uma, na vida sou outra. Quando fazia o espetáculo com Chico Buarque, ficávamos os dois quietos, sentadinhos no camarim. Na hora do show, entrávamos os dois no palco, e Chico dizia: eu sou o mesmo e ela é outra."

FEITICEIRA

Toda de branco, com colares sob e sobre a blusa, Bethânia também é múltipla na manifestação simultânea de inteligência e religiosidade. Pergunto se ela tem fé ou religiosidade. Ela me diz que ambos. "Mãe Menininha ensinou minha religião com tanta fé, respeito, amor, alegria e reverência que, mesmo não existindo as noções opressivas de culpa, pecado, perdão e medo no candomblé, eu faço questão, por respeito a ela, de seguir alguns preceitos e de não fazer algumas coisas, embora não haja interdições."

Por exemplo: a cineasta Tizuka Yamazaki a convidou para fazer o papel de uma das últimas pajés mulheres no Brasil, cuja imagem mais velha seria representada pela atriz Laura Cardoso. "Já pensou que incrível! Adoraria fazer, mas não posso, por questões religiosas. Teria que pintar o corpo em alguns lugares, de algumas cores, e fica complicado. É uma pena."

Digo que Bethânia já foi chamada de feiticeira (ou bruxa) por Caetano Veloso e pelo escritor gaúcho Caio Fernando Abreu e também de um misto de chefe indígena com Cleópatra. Pergunto por que sua figura é tão enigmática. Seriam ela e Caetano opostos complementares? Caetano também é inteligente e articulado, mas não se pode dizer que seja "enigmático". Por quê? "Talvez porque Caetano se exponha mais. Eu me exponho e me entrego completamente no palco, onde não sou nem dramática, sou mesmo trágica, mas fora dele eu gosto de ficar quieta, em casa. Faço entalhe em madeira, faço joias, preciso do trabalho em off. Meus amigos são os mesmos de sempre. Nélida Piñon, Lya Luft, os amigos de colégio. Sou uma caipira simples. Caetano é cosmopolita. Somos gêmeos de barrigas diferentes. Faço tudo na vida para poder chegar a Santo Amaro." Então o rio de sua aldeia é muito mais bonito do que o Tejo? "Muito mais bonito. Assim como outros rios que já estão mortos."

Aproveitando essa conversa de aldeia e cosmopolitismo, pergunto sobre a separação que uma parte da intelectualidade brasileira ainda insiste em manter entre a "alta" e a "baixa" cultura. "Não quero nem saber dessa diferença. Canto sim Villa-Lobos e não preciso cantar com as notas absolutamente límpidas e certas, bem colocadas. Preciso cantar com coração e brasilidade. Por que não dão ao povo brasileiro o direito de ouvir Bach, Beethoven, meu compositor predileto, e Villa-Lobos?"

Digo que o contrário também é verdadeiro. Não só o povo não ouve Bach, como muitos habitués de Bach também não aceitam o popular. "Muitos acadêmicos aceitam os 'pobrinhos', o primitivo, o folclórico, o ingênuo, mas não o popular. Quando gravei Roberto Carlos, o mundo quase caiu em cima de mim." Ela continua: "O Brasil precisa perceber que somos mesmo pobres, que choramos quando vemos uma coisa bonita, que temos nossa alegria única. Precisamos parar de construir essa falsa imagem do Brasil, de que somos ricos, de que nossos problemas estão se resolvendo, de que somos iguais aos países desenvolvidos. Eu amo o brasileiro que, como um acreano que conheci, me escreveu um bilhete pedindo para eu salvar a floresta, ou uma professora de Cidade de Deus, que fez seus alunos criarem um trabalho incrível todo sobre 'Brasileirinho' e os meninos foram se apresentar na Academia Brasileira de Letras, durante o 'chá'. Nunca chorei tanto".

PODRES PODERES

Ainda sobre Roberto Carlos, Bethânia diz que não consegue pensar nele sem Erasmo. "Erasmo é para Roberto o que o [diretor musical] Jaime Alem é para mim. Eu preciso de uma pessoa que tenha sensibilidade para entender o que eu quero, porque eu não sei música, mas sei o que quero. Peço alguma coisa ao Alem, ele faz e, se não está como eu queria, eu digo: Jaime, não é assim. Ele vai lá e faz exatamente como eu pensava. Erasmo é isso."

Lembro que, num dos DVDs sobre sua carreira, ela diz que queria ser trapezista. "Sim, quando era criança eu amava o circo. Olhava aquelas meninas com aquelas roupas, subindo lá no alto e dançando, e pensava: é isso o que eu quero ser. Mas é isso mesmo o que eu sou. É isso o que é estar no palco."

O risco não a atemoriza, mas a desafia, embora ela saiba que os artistas não podem mudar o mundo. Mas usa o palco para dizer o que pensa. "O mundo está todo equivocado. Os mandarins estão todos enganados. Não conheço uma única pessoa que esteja no poder e no caminho certo. Tudo é só dinheiro. Parece que as pessoas estão com uma venda, ou uma viseira. As pessoas em quem eu confio não querem o poder."

Ela olha para baixo, diz: "Não sei. Não sei". Acho que Bethânia sabe, sim. E sabe o que não sabe, que é até mais e melhor do que saber. Não falamos sobre Manuel Bandeira, mas saio desse encontro e penso nele, escrevendo que quando a morte vier encontrará "lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, cada coisa em seu lugar". O instante, que é quando as coisas acontecem, já passou. Não tem importância. Outra poeta, Sophia de Mello Breyner Andresen, a quem a cantora dedicou um disco, sintetiza o que reconheci em Bethânia, no poema "Instante": "Deixai-me limpo/ O ar dos quartos/ E liso/ O branco das paredes/ Deixai-me com as coisas/ Fundadas no silêncio."


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