Folha de S. Paulo


Aos 66, Sonia Braga diz que 'Aquarius' a fez se sentir adolescente de novo

Foi em cima de telhados que a atriz Sonia Braga, 66, desenvolveu dois dos personagens mais importantes de sua carreira. Em 1975, ela subiu num de telhas coloniais vermelhas para resgatar a pipa de um moleque de Ilhéus. Com vestido florido, fez metade da população da pacata cidade baiana quase ter uma síncope.

"Gabriela", novela da Rede Globo baseada em livro do escritor Jorge Amado (1912-2001), colocou sua intérprete na rota das mulheres sensuais. A fama de símbolo sexual jamais deixou de lhe acompanhar.

Quarenta anos mais tarde, na cobertura de um prédio no Chelsea, em Nova York, espaço oferecido pelo amigo e roteirista Mauricio Zacharias, Sonia teve um encontro com o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. Lá discutiram a personagem Clara, jornalista e escritora aposentada, protagonista do filme "Aquarius", que estreia no Brasil em 1º de setembro.

Clara é a última moradora do prédio que dá nome ao filme e fica de frente para uma praia no Recife. Por resistir a se mudar do local que deverá ser demolido, se torna vítima de pressão orquestrada pela construtora, uma metáfora sobre o maquiavelismo instaurado na vida política e social de um Brasil recente.

Exibido no Festival de Cannes em maio, "Aquarius" rendeu elogios à atuação da atriz, que a deixaram "surpresa" e "sufocada". "Sempre tive o defeito de ser famosa", explica Sonia. "O elemento surpresa havia desaparecido. Quando fiz 'Dona Flor' (1976), me mostraram um anúncio de página inteira publicado no New York Times. Achei normal. 'Aquarius' foi um presente inesperado. Havia chegado a um ponto em minha carreira em que pensava: 'Se não tiver mais nada, tá bom assim, minha história já está escrita."

Sonia não concorda que o filme é sua volta ao cinema brasileiro. "Tieta" (1996), sim, o foi. "A única volta, se é que existe, é o fato de Kleber ter me injetado energia novamente, me feito rejuvenescer. Me sinto uma adolescente neste momento."

Sonia nunca teve tantos diálogos num filme como em "Aquarius". Tirando o prólogo da história, está presente em todas as cenas, colocando um LP na vitrola para ouvir "O Quintal do Vizinho", de Roberto e Erasmo Carlos, ou pagando um michê para transar com ela. Foram mais de 120 páginas de texto para ler. Kleber a convenceu a fazer três semanas de ensaios, método que, antes de encontrar o diretor, fazia Sonia "passar mal".

Foi um set feliz. "Sonhei com uma equipe assim por toda minha vida", diz. "Odeio a distinção equipe técnica e elenco, e o fato de que essa divisão, por vezes, resulta num entrosamento menos visceral", diz. "Clint [Eastwood] é o diretor que mais se aproximou a esse estilo de que gosto, de estar presente o tempo todo."

A LOUCA DO BAIRRO

Em 2015, naquela cobertura do Chelsea, Sonia repetiu a Kleber o que sentiu ao ler o roteiro. "Estranhamente me fez sentir como se tivesse recebido a oportunidade de escolher minhas próprias palavras caso tivesse uma plataforma para me expressar sobre certas indignações", diz. "Sempre lutei pela justiça, pela consciência da cidadania, por direitos trabalhistas. Sabe o que é você se sentir louco, sabendo que não está louco? Brigar com a Comlurb [companhia de limpeza pública no Rio de Janeiro] para a retirada do lixo da rua, ir ao Supremo Tribunal Federal para garantir a lei dos direitos autorais dos atores ou ir a público defender nossa Constituição... Pronto, de repente, você é a louca do bairro."

A chegada de "Aquarius" em Cannes não causou frisson apenas entre críticos. No dia da exibição do filme, elenco e produção pararam na entrada do Grand Palais e fizeram um protesto contra o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, segurando cartazes em inglês e francês dizendo que "um golpe de Estado havia ocorrido no Brasil" e que o "mundo não deveria aceitar esse governo ilegítimo".

Ao voltar para Nova York, Sonia encontrou uma enxurrada de mensagens que a atacavam em sua página no Facebook. "Disseram que o Ministério da Cultura patrocinou nossa viagem para Cannes, os vestidos, o champanhe e o caviar. Primeiro, o vestido foi feito para mim pelo meu grande amigo [o designer norte-americano] Narciso Rodriguez. Não bebo e não me lembro de ter comido caviar em Cannes. Passei 12 horas por dia divulgando um filme brasileiro numa das competições artísticas mais importantes do mundo", diz. "As pessoas precisam se informar melhor."

Henrique Gendre
A atriz Sônia Braga em ensaio para Serafina

Sentada no computador de seu apartamento no bairro de Alphabet City, em Nova York, Sonia passou dez horas diárias, durante um período de cinco dias, lendo as mensagens de ódio. "Fui uma por uma. Não entendo pessoas que não conseguem abrir um canal de diálogo."

Dos milhares de seguidores que bloqueou, Sonia decidiu denunciar ao Facebook cerca de cem deles, cujas mensagens classificou como intimidação e perseguição política. "Nesse sentido foi uma vitória deles, pois tive que fechar minha página para comentários. É chato porque tem gente que gosta de mim e gostaria de escrever algo legal."

Se Clara, sua personagem em "Aquarius", deu voz às opiniões da atriz sobre justiça e cidadania, Gabriela foi sua melhor tradução. "A fala 'Sapato, não, seu Nacib' sou eu", diz a atriz. A Sonia que se encontra com a reportagem de Serafina é a Sonia normal, a não "montada", aquela de cabelão solto ("Sempre me perguntam o que passo no cabelo e sempre respondo: 'a mão, para fazer a trança!'").

Assista ao trailer de Aquarius

Usa salto plataforma, calça jeans baggy (novidade em seu guarda-roupa, não comprava um jeans há anos), uma blusa justa de algodão e pochete amarrada na cintura. São tantos itens de sobrevivência nessa pochete que o acessório se parece com um daqueles cinturões de eletricistas. Fuçando ali, entre molho de chaves e lanterna, é bem possível encontrar uma chave de fenda. Ou, como Kleber disse sobre a versão maximizada da pochete, uma enorme mochila cinza que a atriz havia esquecido num dos ensaios: "Aqui está, Sonia, pois nunca sabemos quando vai se ter uma guerra nuclear".

ANTI-SONIA

Quando lhe pergunto em que ponto surgiu a anti-Sonia Braga, a atriz é rápida: "Ela sempre esteve presente". Aos 17 anos, seguindo uma dica de José Rubens Siqueira, que a dirigiu em seu primeiro curta, "Atenção, Perigo" (1966), foi fazer um teste para o musical "Hair". O diretor Ademar Guerra não gostou da Sonia que deu as caras no teste. "Ele achou que eu tinha ido vestida de hippie para conquistar o papel. Mas, era minha roupa do dia a dia." Para a banca examinadora, Ademar disse não querer aquela menininha. Mas a coreógrafa Márika Gidali discordou: "Preciso dela, pois sabe dançar".

"Nunca aprendi a sambar, mas, desde os dez anos, era boa no jazz. Assistia ao programa de dança do coreógrafo Lennie Dale na TV de noite, aprendia a coreografia e, de manhã, quando o programa era reprisado, dançava junto o número memorizado."

Por causa de um revés financeiro na família, após a morte do pai, Hélio Braga, Sonia precisou interromper um curso de balé, no qual se destacava. Até hoje, ela acredita que, caso tivesse prosseguido, poderia até ter sido primeira bailarina do Municipal em vez de atriz. Ela também não fez cursos de arte dramática.

Em Nova York, Sonia gosta de tirar fotografias de cenas da cidade. Fez cursos porque "queria aprender a coisa da maneira correta". Recentemente, iniciou dieta radical: comida crua. Adora assistir a documentários na TV ("Making a Murderer", que retrata as falhas do sistema judiciário americano, é um de seus preferidos).

E faz caminhadas na cidade. Para voltar para casa, prefere o transporte público. "Algumas pessoas no Brasil acham que eu deveria ter um carro com motorista. Que perspectiva de vida é essa? Imagina o John Kennedy Jr. não ter podido andar de metrô?" Sonia também defende seu lado doméstico, de fazer faxina. "Tive um namorado bem famoso que, no fim de noite, ia colocar suas próprias roupas na máquina de lavar."

Henrique Gendre
A atriz Sônia Braga em ensaio para Serafina

Namorados famosos são um tema que deixa Sonia entediada, "principalmente por que me atribuem romances que nunca tive", diz. "Não tenho controle sobre o que falam, jamais vou proibir um livro que escrevam e não vou desmentir mais." Um dos não namorados? O roqueiro David Lee Roth. "Era um amigo divertido. Ia me pegar em casa com seu Cadillac conversível para irmos dançar no Palladium, a discoteca da moda em Nova York depois do fechamento da Studio 54. Ele dirigia cantando aos berros e usava um terno de estampas havaianas. Uma vez, nesse mesmo conversível, levou o Robert Downey Jr., o Anthony Michael Hall e eu para uma festa."

A partir de 30 de setembro, Sonia aparecerá em quatro episódios da série da Netflix "Luke Cage", sobre super-herói da Marvel. Interpreta a dona de um restaurante no bairro do Harlem, em Nova York, mãe da atriz Rosario Dawson. Além da série, tem outros três projetos engatilhados, todos filmes. Existe conversa embrionária de que "Aquarius" poderá ter uma campanha para o Oscar. Sonia já passou por isso antes, na época de "O Beijo da Mulher-Aranha" (1985).

Nos bastidores da cerimônia do Oscar, em 1986, um ano depois de "O Beijo" ter estourado nos Estados Unidos, Sonia sentiu um toque em seu ombro. "Oi, Sonia, não vai falar comigo?" A mão pertencia a um de seus grandes ídolos, que ela havia conhecido há pouco: Elizabeth Taylor.

Se Taylor a reconheceu, a cena não se repete sempre em Nova York, cidade em que ninguém se impressiona com ninguém. Sonia lembra uma cena, no final dos anos 80, quando o Empire era o único restaurante de Manhattan aberto até as 4h.

"Uma noite cheguei e fui colocar meu nome na lista de espera. Soletrei meu sobrenome para o host ranzinza e ele disse: 'Ah, Braga, como a Sonia Braga'. E respondi: Sim, na verdade, sou ela'. E ele: 'Tá, conta outra. Mas, enquanto isso, você poderia esperar lá no fim da fila?'"


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