Folha de S. Paulo


Leia poema inédito de Angélica Freitas em homenagem a Ana Cristina Cesar

Reprodução do acervo Ana Cristina Cesar/IMS
Ana Cristina César
A poeta Ana Cristina César

ANA C.

ana c. me salvou de ser técnica em eletrônica
aos dezesseis
quando entrou de vermelho
em minha vida
e me deixou
aos seus pés

eu não tive escolha
foi um baita clarão
soco na goela seguido
de cisco no olho

quem é ela
o que é isto
quem sou eu

em 1989 a gente não tinha google
as bibliotecas eram enxames
pré-vestibulares

saber de ana c. e em seguida
de seu suicídio
fez de mim uma das mais jovens
viúvas de ana c.

eu me perguntava
mas por quê por quê por quê
você foi se matar
como se uma guria toda errada
míope descabelada
no fim do fundo do país
fosse fazer qualquer diferença
em sua vida ou anseio de continuidade

mas foi assim que aconteceu em 89
e eu larguei os estudos de eletrônica
porque até ana c. eu não sabia que se podia
escrever assim e eu queria escrever

também larguei por outros motivos
que não vêm ao caso aqui
e o que preciso dizer é

até hoje nós viúvas jovens e nem tanto de ana c.
sóbrias ou já meio loucas estamos procurando
uma noite de amor nas linhas de seus poemas

rezando para que saia enfim a tal biografia
que nos conte o que mais houve
para darmos visões novas ao nosso amor
e novos cenários para o nosso tesão

torcendo para saber que outras bocas ela beijava
porque afinal são sempre as nossas

e afinal são as nossas mãos que ela pega
até hoje quando escrevemos um verso, pelo amor -

Angélica Freitas é poeta. Seu livro "Rilke Shake" ganhou o prêmio Best Translated Book Award, da Universidade de Rochester, nos EUA.


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