Folha de S. Paulo


Intacto por 45 anos, apartamento retrata personalidade de Coco Chanel

Dentro dos quatro cômodos do segundo andar do número 31 da rua Cambon, em Paris, tudo está como sua dona deixou antes de morrer a poucas quadras dali, em uma suíte do hotel Ritz. Gabrielle Bonheur Chanel (1883-1971) não visitara seu apartamento diurno naquele seu último domingo porque ninguém trabalhava no edifício de três andares onde ficavam seu ateliê, sua loja, sua moradia e seu escritório.

Serafina visitou o imóvel que serviu de refúgio a Coco Chanel nos últimos 18 anos da estilista mais importante do século 20. Fechado para o público, o lugar conserva relíquias que inspiraram seu trabalho e revelam uma história de luxo, perdas e amores.

Localizar o prédio na história é o primeiro passo para entender sua decoração. Financiada pelo ex-amante e empresário inglês Arthur "Boy" Capel (1881-1919), Chanel abriu no endereço, em 1910, sua primeira grande butique.

O início da Segunda Guerra a fez abandonar a moda e deixar ali apenas o negócio dos perfumes. Quando decidiu voltar ao ofício da costura, em 1953, fez do lugar um quartel-general de sua vida íntima.

Para se chegar ao segundo andar do edifício é preciso subir dois lances de escadas com paredes espelhadas. Desses degraus a estilista assistia escondida, sentada e fumando, às reações do público nos desfiles da marca.

Um segurança esconde a entrada. No hall já é possível identificar a fascinação de Chanel pela Ásia que, apesar de nunca ter influenciado sua moda, foi uma das lembranças mais fortes deixadas por "Boy", o grande amor de sua vida, que tinha adoração por culturas orientais, especialmente a chinesa.

Não há camas nesse espaço, porque a estilista fez da suíte do hotel Ritz seu dormitório, para que tivesse cuidados quando precisasse. O apartamento da Cambon era para trabalhar. E também receber os amigos mais próximos. Passavam por lá gente como o pintor Pablo Picasso (1881-1973) e o poeta Jean Cocteau (1889-1963).

O sofá dos anos 1920 é o único lugar onde é possível sentar ou deitar. A estrutura de ferro e madeira é coberta com um veludo bege trabalhado em matelassê. As almofadas têm o mesmo formato da primeira bolsa criada pela estilista. A 2.55, como batizou o acessório, também é produzida com a técnica do forro do sofá.

Atrás, apoiada numa estante de livros, um desenho nada surrealista dado de presente a Chanel pelo amigo e, ironicamente, pai do surrealismo, o pintor catalão Salvador Dalí (1904-1989). O ramo de trigo desenhado por ele remete à veia supersticiosa. Trigo, para alguns asiáticos, significa prosperidade, e a estilista tratou de espalhá-lo pelo local.

Ele está em esculturas e nas bases de duas mesas ao lado de sua escrivaninha.

Na mesa de trabalho vê-se um jogo de tarô. Uma cartomante tirava ali, diariamente, a sorte da cliente famosa. Uma bola de cristal posicionada na mesa de centro é outro objeto que revela sua personalidade mística. A esfera de quartzo âmbar foi dada por Hugh Grosvenor (1879-1953), duque de Westminster, outro amante. Como não havia outra igual, a designer mandou produzir uma réplica de resina barata para satisfazer sua obsessão por duplas.

Quase tudo no apartamento é colocado em pares. Há vários duetos de animais idênticos dispostos pelo ambiente.

O que mais aparece é o leão, signo astrológico da estilista, com versões posicionadas em mesas, aparadores e estantes. Entre as imagens também há sapos, símbolos de sorte, macacos, representantes da sabedoria e budas.

REDOMA DE MISTÉRIO

Apesar de criada num convento até os 12 anos, Chanel era fascinada por diversas religiões do mundo. Em sua biblioteca particular, livros de William Shakespeare e Platão dividem espaço com enciclopédias e compêndios sobre religiões orientais.

Assiste a tudo, no teto, um dos objetos mais marcantes da sala. Um lustre todo de quartzo e ametista construído com uma estrutura de ferro que forma vários numerais "5", outra mania da estilista -não por acaso, nome de seu perfume mais famoso.

O objeto tem também suas flores preferidas, camélias, e os "Cs" entrelaçados que identificam sua grife.

Há réplicas de santos e imagens africanas, que sinalizam o estilo "hi-low" propagado por ela, que além de libertar as mulheres do corselete, instituiu o uso de joias verdadeiras misturadas a bijuterias. E usou a arquitetura em joias, inclusive em um par de espelhos da sala.

O formato das peças, octogonal como a famosa Place Vendôme, foi usado no primeiro relógio da marca, em 1987. O espelho na sala de saída do apartamento, anexa à de jantar, também é octogonal e serviu de base para o formato da tampa do perfume Nº 5.

A mesa das refeições só comporta oito pessoas porque Coco não gostava de falar alto e queria sempre olhar para os convidados. Quatro conchas douradas sobre a mesa serviam de cinzeiro e de prato para cravos, especiaria que tirava da boca o gosto dos cigarros.

Nas paredes da sala de jantar, cobertas com um tecido amarelado cujo objetivo era esconder maçanetas e fechos, está concretizada a dificuldade da estilista em deixar pessoas próximas partirem. A ideia era que ninguém pensasse em ir embora. A estilista parecia buscar na casa seu nome do meio: "Bonheur", em francês, significa felicidade.


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