Folha de S. Paulo


Depois de 35 anos, colunista volta a Israel para encontrar um país mudado

Num daqueles experimentos naturais com os quais às vezes a vida nos brinda, estive em Israel no final de março, após um hiato de 35 anos. O contraste é visível. Em muitos aspectos, o país mudou para melhor. Em outros, para pior.

Minha primeira viagem ao país se perde nos contornos da memória. Estive ali no inverno de 1980 para 1981 ou 1981 para 1982 (não guardei o passaporte para conferir), quando tinha cerca de 15 anos de idade, participando de um programa –Tapuz– que combinava várias semanas de trabalho num kibutz (fazenda coletiva) com um pouco de turismo. Não sei se o programa ainda existe.

Os kibutzim continuam ali, em menor número e completamente reestruturados. Os que sobreviveram abandonaram um pouco da filosofia socialista que estava na origem de sua fundação e acabaram se tornando grandes corporações. As laranjas ("tapuz" significa laranja em hebraico) de cuja colheita participávamos já quase não existem em Israel –efeitos da globalização.

No tour deste ano, não houve nem sombra de vertentes socializantes. Hospedei-me em hotéis de luxo, como o Waldorf Astoria de Jerusalém, e comi em restaurantes gourmet.

Se há algo que salta à vista, é que a sociedade israelense enriqueceu. As cidades, especialmente Tel Aviv, parecem canteiros de obras, com gruas espalhadas por todos os lados. Os restaurantes em que estivemos, embora não fossem baratos, estavam sempre cheios. O mesmo vale para os vários hotéis que visitamos. Os que não eram novinhos em folha haviam sido reformados recentemente.

Passei em frente ao kibutz Alonim, em que ficara nos anos 80. Ele ainda existe e mantém alguma atividade agrícola, bem como a fábrica de alumínio, na qual cheguei a trabalhar, mas ampliou suas atividades comerciais e hoje é sócio num shopping center construído na entrada do kibutz. Fiquei imaginando o que minha avó materna, uma autêntica "linker" (esquerdista em iídiche), não diria.

Os números dão a dimensão do enriquecimento. Em 1980, o PIB per capita de Israel, era de US$ 5.600; hoje são US$ 37.000. Em 1980 o israelense ganhava menos da metade do que recebia um francês; hoje, ele aufere mais que 85% dos rendimentos médios do gaulês. Se usarmos o Índice de Desenvolvimento Humano, IDH, que considera não apenas riqueza, mas também educação e saúde, Israel passa à frente da França. Ocupa a 18ª posição, contra a 22ª dos franceses.

O destaque na economia é o setor de tecnologia. O país é líder mundial na produção de cientistas. São 140 técnicos e engenheiros para cada 10 mil empregados, contra 85 dos EUA. O resultado aparece tanto na forma de investimentos estrangeiros –Tel Aviv só perde para o Vale do Silício (Califórnia) como berço de start-ups– como no aumento de produtividade nos demais setores da economia.

POLÍTICA CAMINHANTE

Na política, o país caminhou a passos largos para a direita. O governo de 1980 era liderado pelo partido direitista Likud. Em 2016, também é o Likud que comanda, mas há diferenças importantes. O gabinete de 80 assinou um acordo de paz com o Egito, e a esquerda, representada principalmente pelo Partido Trabalhista, era uma alternativa de poder.

Hoje, o governo é conduzido por Binyamin Netanyahu em coalizão com partidos religiosos e de extrema direita e faz o que pode para não sentar-se à mesa de negociações com os palestinos. Os trabalhistas não estão à frente de um governo desde 1999.

Tanto o enriquecimento como o endireitamento de Israel são parcialmente explicados pela demografia. Em 1980, o país tinha 3,8 milhões de habitantes (84% judeus; 13% árabes muçulmanos); hoje, são 8 milhões (75% judeus; 17% muçulmanos). Obviamente, os israelenses não dobraram a população sozinhos em apenas 35 anos. Eles tiveram ajuda externa.

Israel, por oferecer cidadania automática a qualquer judeu que decida viver no país, sempre contou com um fluxo imigratório forte e contínuo. A partir da dissolução da URSS, em 1991, cerca de 1 milhão de judeus soviéticos se mudaram para Israel. Hoje, cartazes e canais de TV em russo são onipresentes.
Na política, as coisas foram mais complicadas.

A experiência pouco positiva com o comunismo fez com que os imigrantes soviéticos tendessem a votar em legendas mais à direita. Surgiram vários "partidos russos" de matiz conservador, como o Yisrael BaAliyah, que depois se juntaria ao Likud.

Paralelamente, judeus ultrarreligiosos, que tendem a ter muito mais filhos que o israelense médio, também viram sua força demográfica e política aumentar.

Normalmente, votam em legendas que defendem a expansão dos assentamentos judaicos em territórios palestinos, que, ao lado da intransigência do Hamas em aceitar a existência do Estado de Israel, constitui um dos principais obstáculos à paz com os palestinos.

O governo se sente confortável para, ignorando até mesmo as pressões dos EUA, ampliar os assentamentos e relegar as conversações de paz ao limbo.

Que ultrarreligiosos e imigrantes soviéticos tenham essa posição é até certo ponto esperado. A mudança que mais me assustou nesses 35 anos foi que, mesmo para os israelenses laicos com simpatias pela esquerda, a situação dos palestinos deixou de ser uma preocupação.

Após as várias intifadas e os atentados dos anos 90, os palestinos foram aos poucos deixando de ser uma presença em Israel. Com a construção dos muros e cercas e as crescentes dificuldades para conseguir emprego, os palestinos sumiram do mapa mental dos israelenses.

É claro que eles e os israelenses nunca se amaram, mas os dois lados ao menos se reconheciam como pessoas. É isso que parece ter acabado. Eles hoje são apenas inimigos abstratos.

Outro sinal da erosão de confiança são as caronas. No início dos anos 80, a carona era uma instituição. Você não precisava tomar um ônibus para viajar pelo país. Bastava estender o dedão.

Em 1987, contudo, após o sequestro de um soldado israelense pelo Hamas (os palestinos haviam se fantasiado de judeus ortodoxos), o Exército proibiu militares de pedir carona e a prática foi declinando.

Outros hábitos mudaram para melhor. Os israelenses, por inspiração bíblica, descansam no shabbat, que vai do final da tarde de sexta-feira ao final da tarde de sábado. Os mais religiosos não executam nenhuma atividade que possa ser interpretada como trabalho, o que inclui ligar o fogão, apertar o botão do elevador, utilizar veículos etc. No que é ainda mais bizarro, querem impor as restrições a quem não é religioso.

Nos anos 80, uma cidade um pouco mais observante, como Jerusalém, se tornava um deserto no shabbat. Comer exigia uma visita à parte árabe da cidade. Hoje não é mais assim. Jerusalém já conta com restaurantes como o Zuni, que abrem 24 horas, sete dias por semana, e, mais incrível ainda, servem carne de porco. Deliciosa, por sinal.

Nem tudo, porém, é mudança neste vale de lágrimas. Não observei nenhuma mudança no deserto da Judeia. Ele continua igualzinho era 35 anos atrás.

O jornalista viajou a convite do Ministério de Turismo de Israel e da rede Hilton.


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