Folha de S. Paulo


Com a mão no Oscar, DiCaprio ouve Jorge Ben Jor e procura Djavan

Há 18 anos, Djavan vem cantando para quem quiser ouvir que ele devoraria seu amor tal Caetano devoraria a Leonardo DiCaprio. Mas Leonardo, por incrível que pareça, até hoje, não tinha ouvido falar de Djavan. Nem ouvido "Eu Te Devoro". "Como se soletra?", ele pergunta, interessado, sentado no sofá de um quarto de hotel em Nova York, enquanto dá um Google no celular. "Dee-jay-a-vee-a-en. Eo... ti... devouro."

Recém-apresentado a Djavan, o ator conta que conhece Caetano Veloso. E também curte Jorge Ben Jor. "Eu estava agora no outro quarto tocando 'Taj Mahal'", diz, sorrindo, pra então soltar: "Taj Maha-a-a-a-al, Taj Mahal!"

Mas esse Leonardo, com jeito moleque, só surge mais pro fim da entrevista. O Leonardo do começo da conversa é aquele que aparece mais recentemente na mídia: sério, comprometido com papéis complexos que lhe renderam cinco indicações ao Oscar e cheio de projetos pra salvar o mundo.

John Russell
Leonardo Di Caprio --- Serafina 94

Aos 41, o Leonardo sério leva uma vida aparentemente controlada. Ajeita a posição do gravador para melhor captar sua voz enquanto dá entrevista cercado de assessores, que cronometram cada segundo da conversa e pedem para que não se toque na vida pessoal do ator —sob o risco de ele deixar a repórter falando sozinha. Pulemos essa parte, então.

Estrela de comercial de chiclete de bola e de queijo sem gordura na infância, o precoce garoto de Los Angeles dividiu a cena com Robert De Niro em "O Despertar de um Homem", aos 18, e foi indicado ao Oscar como coadjuvante de Johnny Depp em "Gilbert Grape: Aprendiz de Sonhador", aos 19. Em 1996, aos 22, fez milhares de Julietas adolescentes pelo mundo caírem de amores pelo seu Romeu com carinha de bebê na versão de Baz Luhrmann para o clássico shakespeariano. Daí foi só abrir os braços para ser megahit de bilheteria em "Titanic", ao lado de Kate Winslet, e virar o rei do mundo.

O sucesso de seu Jack Dawson em "Titanic", de James Cameron, deu origem à chamada "leomania", um surto de paixão global pelo ator. Ganhou documentários e, aos 23 anos, já era objeto de várias biografias (duas delas ficaram entre os livros mais vendidos da lista do "The New York Times" em 1998).

Naquela época, a tal vida pessoal era bem mais animada e nada secreta. Assíduo frequentador de baladas em Nova York, foi apelidado de "príncipe da cidade". Circulava por ali e por Hollywood com uma turma conhecida informalmente como "Pussy Posse" (algo na linha de "o bando da perseguida",  ou um grupo de caçadores de  mulheres), do qual também fazia parte o ator Tobey Maguire, seu melhor amigo.

Com o passar do tempo, o príncipe de Nova York foi deixando a zoeira um pouquinho de lado. Mas o Leo sério de hoje parece ter herdado alguns hábitos do Leo moleque daquela época, principalmente a atração por modelos (ou atrizes com pinta de modelo): além de Gisele Bündchen, ele namorou a top israelense Bar Refaeli, a atriz Blake Lively e, segundo os sites de fofoca, terminou no começo do ano o relacionamento com a modelo Kelly Rohrbach —famosa pelas fotos de biquíni para a revista "Sports Illustrated" e por ganhar uma bolsa para jogar golfe na universidade.

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DESCONFORTÁVEL

Não é complicado entender o que as moças viram nele. Leo aparece num terno cinza claro, com a camisa meio aberta, a barra da calça semidesfiada, o cabelo quase loiro ajeitado num topete e a pele bronzeada de um verão que, pra ele, nunca termina. Ganhou rugas e perdeu a cara de bebê que carregou por anos.

Apesar de ser impossível não notar a barriguinha saliente, mais que normal para um galã de 41 anos e incrementada pela falta de postura no sofá, são os olhos que chamam a atenção. São de um azul que esverdeia ou de um verde que azula. Quando Leo ri, franze a testa toda e espreme os  olhos deixando um espaço pequeno praquele verde-azul escapar.

Esses  olhos têm um papel importante no seu novo filme, que estreia em 4/2: em "O Regresso", o personagem de DiCaprio quase não fala em cena.

O longa, baseado no livro homônimo, de Michael Punke, e inspirado em um personagem real do século 19, conta a história do lendário Hugh Glass, um caçador de peles que sobrevive a uma intensa batalha com um urso, é abandonado à morte por um membro do seu grupo e luta contra as forças da natureza (neve, frio, rios e índios) para se vingar.   

O filme é dirigido pelo mexicano Alejandro Iñárritu, vencedor do último Oscar por "Birdman", que, segundo as lendas das filmagens, maltratou o elenco mais do que o urso maltratou a DiCaprio, fazendo Leonardo e seus colegas madrugarem e atuarem sob um frio congelante para garantir que todas as longas tomadas na neve fossem feitas sob luz natural. Quando questionado sobre a veracidade dos boatos, Leo, elegantemente, livra a barra de Iñárritu e tira o seu da reta. "Acho que todo mundo estava desconfortável, todo mundo trabalhou em condições incrivelmente difíceis. Poucos cineastas aceitariam fazer um filme no inverno profundo, no meio do nada, foi uma tarefa monumental."

Dez entre dez entrevistas do ator sobre "O Regresso" trazem a frase "Esse foi o filme mais difícil que eu já fiz." Toda a dificuldade em realizar o longa e em interpretar o papel parecem fazer parte da campanha de divulgação do filme e de divulgação do próprio Leonardo como potencial merecedor do Oscar. 

"Eu realmente estava naqueles rios, tive que me arrastar pela neve com uma pele de urso gigante, fui meio que enterrado vivo... Foi como fazer um documentário, como um filme esquisito do Werner Herzog dentro de um filme."

A campanha parece estar surtindo efeito. Leo garantiu o prêmio de melhor ator em drama no Globo de Ouro, Iñárritu o de melhor diretor e "O Regresso" foi eleito o melhor filme na categoria drama. Em seguida, chegou a nova indicação ao Oscar de melhor ator.

Para ele, seu trabalho foi quase como o de um mímico. "Havia pouco diálogo, pouco a dizer. Muito da minha atuação foi uma reação ao que me cercava. Mostrar isso para o público apenas pelas minhas ações foi algo que eu nunca tinha feito."

Assim como os olhos e as expressões faciais do ator, a natureza também desempenha um papel fundamental no longa. Depois de filmar em paisagens invernais do Canadá e dos Estados Unidos, realçadas pelas lindas imagens do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (também vencedor do Oscar por "Birdman"), o clima parou de colaborar e a equipe acabou atravessando o continente até a Argentina em busca de neve.

"Toda a neve derreteu em um dia e, de repente, não tínhamos mais a paisagem de que precisávamos", diz Leonardo. "Presenciar os efeitos das mudanças climáticas abriu os meus olhos."

Mas Leo já estava de olhos bem abertos para o assunto há tempos. Quando era adolescente e ainda não imaginava que poderia se tornar um dos atores mais famosos e talentosos do mundo, pensava em juntar dinheiro dos bicos de interpretação para pagar uma faculdade de biologia marinha.

A natureza â€”em especial as questões climáticas— é  a principal entre as muitas causas que ele já abraçou (se engajou no movimento dos direitos LGBT, fez doações para as duas campanhas presidenciais de Barack Obama e participou ao lado de Vladimir Putin de um evento para tentar salvar os tigres da extinção).

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QUAL É A META?

Esse Leo sério quer salvar o mundo e, para isso, criou em 1998 uma fundação que leva seu nome. Há duas semanas, ganhou o prêmio Crystal, para benfeitores do mundo, e doou US$ 15 milhões (cerca de R$ 61,5 milhões) para ajudar a reduzir o consumo mundial de combustíveis fósseis durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.

"Eu realmente acho que a mudança climática é a questão mais importante do mundo, não só agora, mas a mais importante que a humanidade já enfrentou na história. Se eu puder fazer alguma diferença nessa área... Essa é a minha meta."

Arte
#ARSERA3101 LEONARDO DICAPRIO CAPA

E o Oscar, não seria uma meta? Leo dá uma risadinha, dessas de franzir a testa, e diz: "É uma sensação confortante, sabe? Porque não está nas minhas mãos, não tenho controle sobre o que acontece. Tudo o que posso fazer é dar o meu melhor como ator. Se acontecer algum dia, ótimo. Se não, não há nada que eu possa fazer.")

O Leo garoto, aquele que parece gente como a gente e comprou uma jaqueta numa loja lotada na última Black Friday, em Nova York, até gagueja ao falar. "É, eu não diria que é uma meta. Quando você ganha um prêmio, é fantástico", diz. "Mas, quando você olha pra trás, depois de 30, 40 anos, não se lembra de quem ganhou o quê, mas dos filmes que foram ótimos, das performances marcantes."

O tempo está acabando, mas Leo quer saber mais sobre a música. Tento em vão explicar a frase de Caetano no contexto da letra de Djavan. Ele franze a testa, aperta os olhos verde-azuis e ri. "Vou procurar. Mas não vou entender. Quero achar a tradução em inglês pra essa letra", diz o Leo moleque saindo de trás da carapaça do Leo adulto.

Peço aos assessores, já me olhando feio, avisarem se ele conseguir ouvir a canção e tiver algum comentário a fazer. Mas Leo é um ator sério e, até hoje, não se sabe se ele ouviu Djavan.


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