Folha de S. Paulo


Essa é a mistura do Brasil com o Egito: múmia passeia por shopping na Barra

Ritchelly Oliveira
Essa é a mistura da Brasil com o Egito - Sha-amun-en-su - ilustração livre que reproduz a múmia Sha-Amun com base em fotografias e nos desenhos do egiptólogo Antonio Brancaglion#serafina91
Ilustração livre que reproduz a múmia Sha-Amun com base em fotografias e nos desenhos do egiptólogo Antonio Brancaglion

Aos 2.800 anos e com um corpinho que não aparenta mais do que apenas alguns séculos, Sha-Amun-En-Su é a diva que você quer copiar.

Sucesso em Tebas há quase três milênios como cantora solista do templo de Amon, Sha-Amun convivia com o faraó em pessoa, e não passava despercebida pelas ruas da capital do Egito antigo.

Hoje em nova roupagem, com bandagens de linho, resina no crânio, enchimentos na garganta e devidamente eviscerada —"uma mumificação top de linha", segundo o egiptólogo Antonio Brancaglion Junior—, a ex-cantora faz sucesso como estrela da coleção egípcia do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

Sha-Amun já era uma relíquia quando os portugueses aqui chegaram. Isso não a impediu, no entanto, de desfrutar das intimidades do poder em terras tupiniquins. Oferecida como presente diplomático ao imperador dom Pedro 2º durante uma viagem ao Egito, a múmia foi trazida ao país em 1872, e passou seus primeiros anos nos trópicos no abrigo do gabinete do monarca.

Diz-se, inclusive, que o governante se "aconselhava" com a egípcia. Sua carreira na política, contudo, não foi das mais longevas. Dezessete anos depois de sua chegada ao Rio, a República foi instaurada. D. Pedro 2º foi deposto, exilado e nunca mais viu sua companheira de gabinete, que, ao contrário da família real, não arredou pé da Quinta da Boa Vista, que hoje abriga o Museu Nacional.

Com o novo regime, a cantora transformada em múmia finalmente passou a se apresentar novamente ao público.

Mas apenas em partes. Isso porque, até hoje, o corpo de Sha-Amun nunca deixou o caixão. Ela é uma das poucas múmias do mundo nunca abertas, conta Brancaglion, responsável pela coleção egípcia do Museu Nacional.

Em seguida, o egiptólogo enumera algumas das mil e uma utilidades de uma múmia fora de seu caixão. "Na Inglaterra, cobravam-se ingressos para que as pessoas fossem ao teatro observar a abertura das múmias."

E continua: "Os ricos e famosos do período vitoriano também eram fascinados pelo pó de múmia. A rainha Vitória costumava cheirá-lo para combater a artrite. Pedaços dos corpos, como mãos, pés e cabeças, eram vendidos aos turistas. Conta-se até que as locomotivas egípcias usavam múmias em vez de lenha nas fornalhas. Era matéria-prima para eles".

O pó de múmia, caso o leitor esteja curioso, é isso mesmo: múmia moída para inalar. Sortuda, Sha-Amun escapou incólume das locomotivas, dos narizes e dos vendedores de cacarecos ao longo de seu além-vida.

Algumas pragas egípcias, contudo, como cupins e vespas, além de uma janela do gabinete de d. Pedro 2º (que se chocou contra a lateral do esquife, quebrando-o), trataram de castigar o caixão. "Se alguém tentar abri-lo, ele certamente será destruído", afirma Brancaglion.

Se depender da equipe do Museu Nacional, a previsão para Sha-Amun é de mais algumas boas décadas sem se expor à luz do sol. "Quem tem múmia tem, quem não tem não vai ter mais. Se a perdermos, jamais conseguiremos outra coisa remotamente parecida. Temos que conservá-la ao máximo". Para isso, a múmia precisa passear de vez em quando. Em 2008, por exemplo, Sha-Amun deu uma volta por um shopping na Barra. Devidamente acompanhada, é claro.

É que a equipe do Museu Nacional, na impossibilidade de abrir o caixão de Sha-Amun, estuda a múmia por meio de tomografias computadorizadas, todas elas realizadas no CDPI, uma clínica de diagnósticos no Barrashopping. "É feita uma caixa especial e ela vai de ambulância até a clínica", explica Brancaglion, para depois emendar um elogio à forma física do xodó da coleção. "Os ossos dela até que estão bem amarradinhos."

A diva da Antiguidade tem tudo para chegar ao seu terceiro milênio fazendo sucesso, e tudo isso sem pôr a cara no sol. E, se no mundo da música gente como a cantora Lana Del Rey diz que "queria estar morta", para Sha-Amun isso é conversa furada. A crença egípcia é que, toda vez que falamos de uma pessoa, ela continua viva. "Sha-Amun deve estar muito feliz", diz Brancaglion. "Eu falo dela pra caramba."


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