Folha de S. Paulo


Em novo documentário, cineasta gaúcho Jorge Furtado investiga o jornalismo brasileiro

"O artista sabe o que faz, mas para que seu trabalho valha a pena ele precisa ultrapassar esta barreira e fazer aquilo que não sabe."

A frase do escultor espanhol Eduardo Chillida (1924-2002) é usada pelo cineasta gaúcho Jorge Furtado, 55, para definir o seu momento atual. Conhecido especialmente pelas comédias ("O Homem que Copiava", de 2003, "Meu Tio Matou um Cara", de 2004) e pelo trabalho na televisão ("Doce de Mãe", de 2014), Jorge investe pela primeira vez no documentário em longa-metragem com "O Mercado de Notícias", que estreia em 7 de agosto.

O filme é dedicado a debater o jornalismo contemporâneo brasileiro. Para isso, traz o depoimento de 13 jornalistas políticos da imprensa nacional, escolhidos pelo próprio autor, como Fernando Rodrigues e Janio de Freitas, ambos da Folha, Mino Carta ("Carta Capital"), Bob Fernandes ("Terra Magazine") e Cristiana Lôbo (GloboNews), entre outros. "Procurei ouvir gente que respeito, cujas opiniões até se opõem, mas que têm em comum a honestidade intelectual", explica o diretor.

Tudo teve início no fim do século passado, quando Jorge começou a achar que o jornalismo passava por uma crise. "Com as informações na internet, parecia que o papel do repórter, do editor, não era mais necessário, mas eu tinha a sensação oposta. Agora é que a gente precisa dos jornalistas, senão quem vai descobrir a verdade antes de publicar?"

O cineasta pesquisou a origem da imprensa e se deparou com a peça "O Mercado de Notícias", do dramaturgo inglês Ben Jonson (1572-1637). Escrita em 1625, poucos anos depois do surgimento dos primeiros jornais na Europa, ela já apresentava dilemas jornalísticos importantes até hoje, como o financiamento dos veículos, a apuração das informações e a ética profissional.

A tradução do texto, até então inédito em português, foi feita por Jorge e pela professora Liziane Kugland e levou três anos. "A peça foi o meu ponto de partida. Mandei para todos os jornalistas entrevistados, com uma entrevista baseada na obra, levantando aquelas questões", diz. Os ensaios do espetáculo, entremeados por depoimentos, servem como fio condutor do filme.

Na abertura, Jorge Furtado comenta com o grupo de atores que sua intenção é fazer um filme favorável ao jornalismo. "Hoje, com a disponibilidade de mídia que há, as pessoas têm muito mais tendência a falar mal. Mas isso é fácil, o difícil é ser propositivo. Então, preferi fazer um filme a favor do jornalismo."

Na prática, no entanto, o resultado não se mostra tão amistoso à profissão. Não por causa do diretor, e sim dos próprios entrevistados, que em sua maioria apresentaram uma visão pouco favorável de seu ofício. "Os jornalistas são muito críticos. Sou mais otimista do que a maioria deles", opina o diretor.

Ao longo do filme, cinco casos ilustram momentos em que a imprensa errou. Por exemplo, em 2004, vários jornais do país noticiaram que a sede do INSS, em Brasília, tinha um quadro de Picasso em uma de suas salas, que teria sido adquirido como pagamento de uma dívida. Na verdade, tratava-se de um pôster.

Tempos depois, após um incêndio, os jornais voltaram ao tema, noticiando que a "obra" de Picasso teria sido salva das chamas. Para o cineasta, além da negligência na apuração, o exemplo ilustra a relutância dos veículos e de parte dos profissionais em assumir suas falhas. "Quando um jornalista assume seu erro, passo a acreditar mais nele, que cresce para mim em credibilidade."

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Dois aspectos vinculados à atuação jornalística surpreenderam o cineasta. O primeiro é a relação dos repórteres com as fontes. "Eles precisam ouvir todo mundo, desde bandidos e traficantes até políticos de todos os partidos. É uma relação muito específica, que para as 'pessoas normais' é muito estranha." Também chamou a atenção do cineasta a oposição que às vezes existe entre o que os jornalistas produzem e os interesses da empresa na qual trabalham: "Uma notícia sempre contraria alguém".

Essa é a primeira experiência do diretor com a narrativa documental em longa-metragem. Mas o filme que o revelou foi um curta-documentário, "Ilha das Flores", de 1989, premiado no Festival de Berlim e que narra a saga de um tomate, desde que é plantado, colhido e exposto em um supermercado, onde apodrece e é jogado fora. Acaba na sacola de uma família pobre que se alimenta de restos, no lixão próximo a Porto Alegre que dá nome ao filme.

Dessa vez, tantos anos depois, Jorge deparou-se com problemas inéditos em sua carreira, alguns dos quais bastante semelhantes aos que enfrentam os próprios jornalistas, foco de sua obra. "Descobri que não sou um bom entrevistador, falo muito durante a entrevista", confessa. "Na hora de montar, foi um sufoco, porque eu não calava a boca nunca."


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