Folha de S. Paulo


Filha do escritor Albert Camus preserva a obra do pai, mas ainda tem medo de escrever

"Eu estava no corredor da morte e, um dia, o homem que limpava o chão me disse: 'me dá um pacote de cigarro'. Eu disse: 'por quê?', ele insistiu, eu dei e ele me devolveu junto com um livro de bolso. Era "O Estrangeiro". Eu segurei o livro com todos os meus dedos. Camus parece entender o que dá energia às pessoas"; "Camus é um guia para quando as coisas não vão bem. Quando eu preciso dele, eu o chamo. Pode ser a qualquer hora"; "Hoje posso dizer que Camus salvou minha vida"; "Quando o leio, tenho sede de escrever. Foi Camus que fez de mim uma verdadeira autora."

Esses são depoimentos reais de pessoas tão diferentes quanto Ronald Keine, ativista norte-americano que foi inocentado nove dias antes da sua execução; Thibault Tsimi, publicitário camaronês; Islem Meghiref, aprendiz de "pâtisser" argelino; e Patti Smith, a cantora e compositora, todos personagens do documentário "Vivre avec Camus", lançado na França em novembro, mês que comemorou o centenário do autor.

Faz sentido então concluir que essa presença universal foi o que motivou Catherine Camus, filha e gestora da obra do escritor, a desdobrar as viagens do pai pelo mundo -inclusive ao Brasil, que visitou em 1949 acompanhado por Oswald de Andrade, onde escreveu o conto "A Pedra que Cresce"- em um livro, "Le Monde en Partage - Itinéraires d'Albert Camus", lançado no fim de novembro (também) na França e sem previsão de chegada por aqui.

"Não", responde ela, firme, enquanto acende um dos muitos cigarros bem colocados em uma piteira antiga - vício que herdou do pai, fumante inveterado, que não deixou o tabaco nem quando foi diagnosticado com tuberculose. "Reuni fotos e citações da obra do meu pai [algumas inéditas] para tentar mostrar que o mundo não é esta tal mundialização, termo abstrato que dá aos seres humanos um sentimento definitivo de impotência. Quis mostrar que há o céu, a natureza, a beleza..."

E é cercada pela vegetação mediterrânea da Provence que Catherine vive, cercada por quatro cachorros e dois gatos, na casa que foi comprada pelo pai após ganhar o prêmio Nobel em 1957.

"Ele, que era mediterrâneo, foi obrigado a morar longe do mar por causa da tuberculose. Mas sempre dizia que sabia que, ali, logo depois da montanha, estava o oceano. E, de uma certa maneira, acho que ele sempre se sentiu exilado em Paris", revela.

É dali, em um pequeno escritório montado no subsolo da casa na rua Albert Camus, que ela gere a obra do pai há mais de 30 anos -foi Catherine que decidiu se debruçar, organizar e publicar os manuscritos da última obra inacabada de Camus, "O Primeiro Homem", encontrados entre os destroços do acidente de carro que tirou a vida do escritor em 1960, aos 46 anos. O romance autobiográfico, que conta sua infância pobre na Argélia (seu pai morreu na Primeira Guerra Mundial um ano após seu nascimento e sua mãe, analfabeta e quase surda, trabalhava como empregada doméstica), teve um papel importante na mudança da imagem do autor, que foi muito criticado na França (por sua posição contrária ao totalitarismo soviético, opinião que rendeu rusgas com o então amigo Jean-Paul Sartre) e na Argélia (ele foi contra a guerra pela independência da Argélia), defende ela.

FESTA EM CASA

"Acredito que Camus é um bom companheiro porque não mostra um caminho, ele respeita que cada um tenha o seu, e a consciência de que estamos todos na mesma terra, com os mesmos problemas. É minha maneira de ver, não sou uma estudiosa. Sou só a sua filha."

Avessa a comemorações oficiais, Catherine preferiu celebrar o centenário de maneira discreta, com uma partida de futebol em Lourmarin, em junho. "Ele amava futebol e era um grande torcedor da equipe local. Achei que seria simpático", conta ela, que recebeu doações da cidade (o padeiro ficou responsável pelo pão, o produtor de vinhos pelas garrafas servidas) para fazer uma pequena festa ao ar livre após a partida, toda decorada com desenhos das crianças da escola do município.

As outras homenagens -exposições, debates, leituras; vitrines comemorativas por toda Paris e até um "doodle", quando o Google homenageia alguém em eu logo- foram todas espontâneas. "Para as autoridades francesas, quem é meu pai? Quem é esse selvagem africano, sem formação acadêmica? Em tudo que é oficial e protocolar você procura desesperadamente a verdade e ela é difícil a encontrar. E se tinha algo que meu pai detestava era mentira. Era impossível mentir pra ele! Se tínhamos feito algo errado (Catherine tem um irmão gêmeo, Jean), ele nos perguntava: 'por que você fez isso? E como você avalia o que fez?' Para uma criança era muito difícil. Nós não tínhamos religião, mas mentir em casa era um pecado mortal."

Mas Camus não era um pai rígido. Brincava em qualquer situação. "Ele não dava importância ao que não tinha importância, acho que por causa da sua doença, que o fez próximo da morte. Isso fazia dele uma pessoa muito leve."

Mesmo com a intimidade com a literatura, Catherine ainda não se convenceu a escrever um romance. Não por falta de vontade, mas um pouco pela pressão do sobrenome. "Tenho uma ideia há um tempo já, de falar sobre ser mulher em um mundo de homens, mas não sei. Fora que, quando você escreve, você não vive. Prefiro cuidar dos meus cachorros e gatos, acho que é mais meu lugar".


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