Folha de S. Paulo


Dona do Ritz e Spot, Marilove testou as primeiras receitas com Gil e Caetano em Londres

A trajetória de Maria Helena Guimarães tem sido intensa. Aos 22 anos, saiu de casa para "cair na vida" (o ano em que isso aconteceu ela mantém em segredo). Hoje, é uma empresária bem-sucedida, dona de duas marcas consagradas da gastronomia de São Paulo: os restaurantes Ritz e Spot.

E teve a vida povoada de artistas. Foi ela, em Londres, nos anos 1960, quem apresentou Jorge Mautner a Caetano e Gil. A proximidade com os músicos fez com que Maria
Helena aparecesse em dois documentários recentes, "Tropicália" (2012), de Marcelo Machado, e "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto" (2012), de Pedro Bial e Heitor d'Alincourt.

Foi seu irmão mais velho, Aparício Basílio da Silva (1936-1992), quem primeiro lhe deu guarida. Ele era um homem importante na sociedade paulistana dos anos 1960 até os 1980. Criador da marca de perfumes Rastro, foi presidente do MAM-SP por quase uma década. Queria que a irmã fosse cantora e conseguiu até um tutor: Vinicius de Moraes.

No Rio, Maria Helena se aproximou de Arthur Guimarães, que viraria seu companheiro de vida, marido, melhor amigo. Na época, ele produzia o espetáculo "Rosa de Ouro" (1965), com Nelson Sargento, Clementina de Jesus e Paulinho da Viola no elenco. Era o sucesso da temporada.

Em 1966, mudaram-se para a Inglaterra. "Londres era o lugar quente de estar. Ele foi na frente e, seis meses depois, me mandou uma passagem de navio. Fomos nos conhecendo lá, morando junto", lembra.

Maria Helena desembarcou em Londres em pleno "Summer of Love", o "verão do amor" de 1967. A primeira coisa que ouviu quando chegou foi "She's Leaving Home", do recém-lançado "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles. Parecia feita para ela.

BALADAS CULINÁRIAS

Os dois trabalharam em um restaurante, como "faz tudo", e aprenderam juntos os bastidores do negócio. Cozinhar, ela aprendeu na raça. "A gente fazia jantares em casa. Todo mundo falava mal da comida inglesa, mas o produto era espetacular, muito fresco. E começamos a receber gente. Muita. Em um ano tivemos 320 visitas", diz.

Uma delas foi Mautner, amigo de infância de Arthur. "A casa deles era uma embaixada do Brasil", diz o músico, que retratou o ambiente no filme "O Demiurgo" (1970), um longa-metragem em super 8 com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé, Péricles Cavalcanti, Norma Bengell e, claro, Maria Helena. Todas essas pessoas passaram pela casa -e outras, como Júlio Bressane, Zé Celso Martinez Corrêa, Helena Ignez e Rogério Sganzerla (1946-2004). Alguns só para jantar, outros ficavam semanas.

Caetano Veloso lembra que conheceu Maria Helena na entrada de um cinema em Londres, onde foi ver "Sympathy for the Devil" (1968), documentário de Jean-Luc Godard sobre os Rolling Stones. "Eu gostei imediatamente dela, aquele sorriso, aquela elegância. Começamos a nos falar ali mesmo. Somos amigos até hoje e me orgulho de ela ser uma das figuras definidoras da feição atual da cidade de São Paulo", diz Caetano.

E foi ele o responsável pela experiência mais profissional dela como cantora -no coro do compacto "O Carnaval de Caetano", gravado em Londres, em 1971. Recebeu até cachê. "A gente vivia uma coisa psicodélica na Europa, era mágico", diz Maria Helena. Ela e Arthur não queriam voltar para o Brasil. "Voltamos por causa do Caetano e do Gil. Eles acenderam na gente essa saudade, dado o amor que têm pelo país".

"Construiu-se ali uma comunidade muito viva de brasileiros. Abrindo-se a perspectiva da volta para alguns, isso influenciava quase todos", lembra Gil. "Maria Helena jamais passaria ilesa a isso", ri.

BACK TO BRASIL

Voltaram em 1974, direto para o Rio. Compraram uma casa em ruínas em Santa Teresa. "Éramos muito boêmios, saíamos à noite de óculos escuros porque só voltaríamos de manhã", ri Maria Helena. O músico Péricles Cavalcanti lembra bem dessa casa. "Morei ali por um mês. Tinha festas de arromba. O cineasta Neville d'Almeida também frequentava muito. Foi lá que filmou a antológica cena da piscina no filme 'Os Sete Gatinhos (1980)'", lembra. A cena a que ele se refere é uma em que Regina Casé, então com 26 anos, nua, provoca Maurício do Valle e termina por humilhá-lo: "Tenho nojo de homem".

A temporada no Rio acabou em 1980, quando Maria Helena e Arthur mudaram-se para São Paulo para abrir um negócio. Criaram uma lanchonete chamada Sanduíche, na rua Oscar Freire, nos Jardins. Deu tão certo que ela logo foi convidada por uma amiga para tornar um ponto na alameda Franca, perto dali, em algo parecido com aquilo. Em 1981, nasceu o Ritz -hoje com duas filiais.

"Queríamos um hambúrguer que desse para comer mal passado. E o Arthur quis trazer para cá a ideia de servir vinho em taça", lembra. "O Ritz demorou seis meses para pegar. Mas lembro o dia que deu a virada. O Arthur teve que ir para a porta escolher quem ia entrar".

Ganhando dinheiro, o marido resolveu investir em uma casa de shows. O rock nacional dominava as emissoras de rádio, e, em 1984, nasceu o Radar Tantã, no Bom Retiro. Quase todos os roqueiros brasileiros passaram por aquele palco. "Em 15 dias o investimento se pagou", lembra Maria Helena.

APELIDO

Arnaldo Antunes, que tocou no Radar Tantã com os Titãs, é amigo dela até hoje. E bem no seu estilo pós-concretista, mandou essa mensagem em forma de lista: "1) a melhor anfitriã; 2) a risada mais gostosa; 3) o abraço idem; 4) o conhecimento gastronômico mais apurado; 5) o cultural idem. A delícia do encontro, a descontração, a gentileza. O que mais dá para querer de uma amiga? Por isso a chamamos de Marilove".

Um ano depois da inauguração do Radar Tantã, o casal abriu, na avenida Nove de Julho, o primeiro America, que logo se transformou numa rede, com várias lojas na cidade.
O sucesso profissional contrabalançou os maiores golpes que levou na vida. Em 1989, aos 48 anos, Arthur morreu de septicemia generalizada. "A gente viajava junto para não morrer separado. E acabou que...", ela chora, sem completar a frase. Em 1992, Aparício, seu irmão, foi assassinado. "Mergulhei de cabeça no trabalho para me proteger do sofrimento".

O restaurante Spot nasceu dois anos depois da morte do irmão. Cravado em uma praça entre a avenida Paulista e a alameda Ministro Rocha Azevedo, com fachada de vidro, logo virou a febre que é até hoje, com filas de espera de quase duas horas a qualquer dia da semana.

"O Spot é uma extensão do refinamento de Maria Helena, local para o encontro dos artistas", diz o poeta Augusto de Campos.

Maria Helena lembra que, na inauguração, nada funcionava direito. Os pratos demoravam, os garçons se confundiam. Ela jantava com Péricles Cavalcanti, que assistia assustado ao caos. E disse: "Calma, Péricles! Aqui é como musical da Broadway: não deu certo, a gente fecha".

Em 2000, Maria Helena vendeu sua parte no America. "Perdia muito tempo em reuniões e experimentando pratos". Mas ela não estava diminuindo o ritmo, apenas concentrando esforços, já que, a essa altura abria a primeira filial do Ritz, no Itaim. Em 2011, veio a segunda, no Shopping Iguatemi.

E tem mais novidade vindo aí: dia 2 de junho o Spot abre a primeira filial, no Shopping JK Iguatemi. Pode contar com uma boa trilha sonora.


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