Folha de S. Paulo


'Nunca vi tanta dor em minha vida', diz psicólogo sobre John Lennon

O homem que fez John Lennon e Steve Jobs gritarem a plenos pulmões fala baixinho e devagar, com uma voz suave. Seu nome é Arthur Janov, criador da terapia primal e autor do best-seller de 1970 "The Primal Scream" (lançado no Brasil como "O Grito Primal" e fora de catálogo), cujas influências reverberam mais na cultura pop do que na psicologia tradicional.

Aos 88 anos, Janov reclama de dor na garganta, mas diz que seu estado de saúde é ótimo graças à própria terapia, segundo a qual doenças e neuroses são resultados de dores reprimidas na infância e no parto. A solução, ele diz, é reviver a dor e abraçar a choradeira (e gritos, urros etc.).

"Toda a dor de não ter sido amado quando criança fica gravada no cérebro, nos músculos, nos ossos. Ela nunca vai embora", contou Janov para Serafina, em sua casa, com pé na areia, na praia de Malibu, repleta de livros e flores, além de dois gatinhos.

Com Ph.D em psicologia pela Universidade da Califórnia, Janov tem 11 livros publicados. O mais recente é de 2006 e se chama "Primal Healing" (cura primal). "Quarenta anos depois, o princípio da terapia segue o mesmo, mas hoje sabemos mais detalhes de como o cérebro funciona e aprimoramos as técnicas."

Flavio Scorsato
Retrato do psicólogo californiano Arthur Janov, criador da terpia primal, que influenciou o ex-beatle John Lennon
Retrato do psicólogo californiano Arthur Janov, criador da terpia primal que influenciou o ex-beatle John Lennon

Apesar de pesquisas com resultados positivos feitas por universidades ao longo das décadas, a terapia primal nunca virou "mainstream", talvez pelas poucas provas de eficácia.

Mas, se não fosse por ela, o mundo não teria visto um dos álbuns mais pessoais e intensos do rock, "John Lennon/Plastic Ono Band", a estreia solo do ex-Beatle, de 1970, escrito durante os cinco meses em que ele se tratou com o psicólogo californiano.

BEATLE

"Nunca vi tanta dor em toda minha vida", conta Janov sobre Lennon, abandonado pelos pais e criado por uma tia. "Ele me mandou o disco assim que ficou pronto e eu toquei para um grupo de pacientes. Todos foram à loucura, começaram a gritar, porque o álbum falou para suas almas. Foi incrível."

Lennon (1940-1980) e Yoko Ono, 79, receberam uma cópia do livro "O Grito Primal" por correio quando moravam em Londres e ficaram intrigados. Janov viajou para tratá-los e depois eles vieram para a clínica de Los Angeles.

"A partir das nossas discussões, ele escreveu o álbum. Uma vez, perguntou sobre religião e eu disse: 'Quanto mais dor você sente, mais precisa acreditar na religião. Virou a canção 'God''."

O disco inteiro é feito de referências às teorias de Janov e de sentimentos doloridos descobertos em sessão, como nos gritos angustiantes da canção "Mother" ou nas letras "janovianas" de "Working Class Hero".

Lennon interrompeu o tratamento. Segundo Janov, o músico precisava sair dos EUA por causa do visto e queria que ele o acompanhasse ao México.

Segundo o livro "The Love You Make "" An Insider's Story of The Beatles", de 1983 (inédito no Brasil), de Peter Brown e Steven Gaines, Lennon se desiludiu com Janov quando ele tentou gravar em vídeo uma de suas sessões.

Ainda assim, Peter Brown (padrinho de casamento de John e Yoko) afirma que a terapia transformou o ex-Beatle num novo artista, colocando-o em contato real com seus medos e sentimentos.

Janov acredita que a falta de interesse atual de seus conterrâneos por sua técnica se deve às "besteiradas 'new age' e à espiritualidade nonsense" que inundam o país.

E reclama de "charlatões" que se passam por terapeutas primais, enganando gente como Steve Jobs (1955-2011), que pensou que se tratava com um discípulo de Janov, em 1974.

"Isso me deixa louco. Não sei se Jobs teria sobrevivido se tivesse vindo a nós, mas teria maiores chances", acredita.

Na biografia autorizada, escrita pelo jornalista Walter Isaacson, o cofundador da Apple afirma que a terapia era simplista e não ajudou muito. Mas a amiga Elizabeth Holmes diz, segundo a mesma biografia, que Jobs saiu da experiência bem mais confiante e em paz, pelo menos por um tempo.

PORRADAS TERAPÊUTICAS

Hoje, Janov se dedica a escrever e a nadar diariamente. A clínica em Santa Mônica (Los Angeles), que leva seu sobrenome, é a única que sobrou após o fechamento dos escritórios em Paris e em Nova York.

O local fica aos cuidados de sua segunda mulher, a psicóloga francesa France Janov, 71, responsável pelo treinamento de terapeutas e pelo atendimento de 50 pacientes.

A clínica possui três quartos à prova de som, onde acontecem as consultas. Há ursinhos de pelúcia para ajudar a reviver lembranças da infância e caixas de lenços empilhadas.

Numa sala para terapia em grupo, há um saco de pancadas e bastões para quem quiser se livrar da dor via cacetadas nas paredes acolchoadas.

Para começar o tratamento, é preciso responder a perguntas sobre seu próprio parto (fórceps, cesariana ou natural?), se foi circuncidado e quando chorou pela última vez.

O programa inicial, de três semanas, com terapia individual diária, custa R$ 14 mil.

Mas já é possível fazer o tratamento via Skype. "Hoje, temos mais gente do Leste Europeu e latino-americanos do que americanos", explica Janov. France continua: "O problema é que eles podem ficar pouco tempo nos EUA por causa do visto. Então, o Skype ajuda". É a nova tecnologia primal.


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