Folha de S. Paulo


Artistas reúnem objetos para destruir em globo da morte duplo

"O casamento de vocês é quando?", pergunta a vendedora de loja da rua São Caetano, a rua das noivas, em São Paulo. A dupla que comprava bonequinhos de bolo não era propriamente um casal, e sim os artistas Nuno Ramos, 52, e Eduardo Climachauska, 54, amigos há anos e caçadores de objetos há alguns meses.

O nome de Nuno ficou conhecido do grande público por uma polêmica. Na última Bienal de Arte de São Paulo, em 2010, sua instalação "Bandeira Branca", que mantinha três urubus em cativeiro, provocou a revolta dos ambientalistas e um abaixo-assinado contra a obra. O projeto era tão visceral quanto "111", um trabalho de 1992 que lembrava os mortos do massacre do Carandiru.

Climachauska também tem ideias diferentonas: pintou quadros com tinta asfáltica representando a rua da infância, fotografou cachorros na madrugada durante meses. Os dois espíritos inquietos se encontram na composição de sambas e na concretização de planos malucos, como o que os levou à rua das noivas.

Nuno e Clima, como é conhecido Eduardo, viraram mascates do alheio, garimpando coisas para compor uma instalação gigantesca, uma "peça-performance" intitulada "Globo da Morte de Tudo", exibida, a partir de 13 de novembro, na galeria Anita Schwartz, no Rio.

O plano é ousado e difícil de explicar. O Globo da Morte de Tudo na verdade são dois globos, os mesmos usados nos circos, com cerca de quatro metros de diâmetro cada um, interligados de maneira a formar um oito tombado. Cada um deles terá o seu motociclista.

OBJETOS IDENTIFICADOS

Não é fácil encontrar um globo da morte nos dias de hoje. Só existem duas fábricas no Brasil, ambas na pequena cidade de Guarani das Missões, no interior gaúcho. "Desde que proibiram animais em circo, voltaram os mágicos e os globos da morte", diz Clima. Ou seja, aumentou a demanda.

A dupla de artistas só conseguiu comprar um –o outro teve de ser construído. Na obra, os globos conectados ficam no meio de uma arena composta por quatro estantes de aço, com seis metros de altura cada uma. As estantes, ligadas aos globos por hastes de metal, irão sacudir com a trepidação causada pelo movimento das duas motos.

Diante disso, toda uma parafernália de cerca de 1200 objetos, entre eles copos, garrafas e frascos de perfume cheios de nanquim, cerveja, caulim e lama, mais duas toneladas de vidro plano, tende a desabar das estantes.

Os cálculos, bem como a construção dos aparatos, foram feitos em Nova Lima, perto de Belo Horizonte, pela equipe do arquiteto e construtor mineiro Allen Rescoe, famoso também por ajudar na concretização das esculturas de Amílcar de Castro (1920-2002), outro artista que costumava pegar no pesado.

COMO DETETIVES

Também fazem parte da coleção alguns dossiês de personagens como o goleiro Barbosa (1921-2000), da seleção de 1950, Nelson Cavaquinho (1911-1986), ídolo deles,
Tiger Woods, o jogador de golfe, e Taís, a garçonete do bar Sabiá, na Vila Madalena, que os artistas frequentam.

Os dossiês trazem fotos, documentos e, no caso de pessoas próximas, papéis que tenham algum sentido para elas. E ficarão catalogados dentro de caixas de vidro que, como o resto, não poderão ser manuseadas.

Os visitantes transitarão ao redor da peça-performance, inaugurada em dois momentos, um antes e outro depois da trepidação. O evento principal, porém, o das motos, será visto no dia 13 de novembro por convidados da galeria e dos artistas –o pouco de gente que cabe no espaço quase todo ocupado pela instalação.

Rafael Motta/Nitro
Nuno Ramos (foto) dentro do Globo da Morte, onde objetos serão destruídos
Nuno Ramos (foto) dentro do Globo da Morte, onde objetos serão destruídos

Vai acontecer uma única vez, durante apenas três minutos, em que os motoqueiros girarão pelos globos. A trepidação causará uma chuva de líquidos e objetos. Todo o material reunido estará separado nas estantes segundo categorias inventadas pela dupla: nanquim, cerveja, porcelana e cerâmica. "Nanquim é algo ligado à morte, às coisas escuras, calcinadas", explica Clima. "Por exemplo, uma radiografia, um narguilé, um pôster dos Ramones, um pinguim de geladeira", explica.

"Porcelana é luxo. Frufru, frescura, as coisas meio cafonas como vasos sanitários, pias, computadores". Cerveja tem objetos ligados à vida cotidiana: "máquinas, troféus, bolas de sinuca".
E cerâmica tem a ver com coisas arcaicas: instrumentos agrários, berrantes, material de pedreiro. "Precisávamos organizar a coleção. É a nossa taxonomia pessoal", diz Clima, usando um termo acadêmico próprio para definir grupos biológicos.

DÁ-SE, COMPRA-SE

No galpão de 600 metros quadrados coroado por uma claraboia que serve como estúdio de Nuno, no bairro do Cambuci, em São Paulo, amontoa-se apenas metade do material. A outra metade está em Belo Horizonte. Entre quadros e outros trabalhos mais pesados, alguns cobertos por um misterioso plástico preto, estão objetos doados, comprados ou coletados pelos artistas. "Doar é uma paixão", diz Nuno. "Você começa e não para mais. Lá em casa foi assim. Minha mulher não conseguia parar de se livrar das coisas."

JUNTOS NO SAMBA

Nuno e Clima são personalidades complementares, com pontos em comum. Já fizeram alguns filmes juntos -Clima estudou cinema na ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP), enquanto Nuno fez filosofia na mesma universidade.

Ambos cultivam um certo gosto por destruir e reconfigurar coisas. Clima pendurou cristaleiras no teto de uma galeria. Nuno deixou alguns móveis mergulhados nas águas de uma praia, para ver como o tempo agia sobre eles.

Foi a música, no entanto, que os uniu primeiro. Eles são parceiros em mais ou menos 30 sambas tristes, na linhagem de Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Keti e Batatinha, os ídolos deles.
Quem os apresentou foi Romulo Fróes, que na época era assistente de Nuno e hoje tem uma carreira na música paulista. As composições da dupla Nuno/Clima aparecem nos discos de Rômulo. Uma delas, "Jurei", foi gravada por Gal Costa.

Vários instrumentos musicais de corda, por sinal, compõem a parafernália acumulada no galpão do Cambuci, separados nas quatro categorias. Eles também vão chacoalhar e cair, junto com os vidros e líquidos. "Há um lindo ensaio sobre os povos primitivos escrito pelo sociólogo francês Marcel Mauss (1872-1950) em 1925 ('Ensaio sobre a Dádiva', editora Cosac Naify).

Começamos com essa ideia de dádiva, de dar, de entregar, de perder, de jogar fora, de deixar morrer, de reconfigurar", diz Nuno. Para concluir, um tanto perplexo: "Nunca pensei tanto em coisas do mundo real".


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