Folha de S. Paulo


Escritor que manda mal não ganha segunda chance

Depois da maratona cinematográfica do Festival do Rio, algumas questões martelam em minha cabeça. A primeira delas: os espectadores de filmes ruins sempre dão uma segunda chance ao diretor, enquanto os leitores de livros apenas bons são vingativos. Se não for obra-prima, não volta para a estante.

O livro é fruto do acúmulo: de ideias, de leitura, de vida. Para que seja escrito, perde-se boa parte da vida. Engajar-se em uma nova aventura de escrita é ser capturado pelo texto, é encontrar-se em uma mesa com pessoas que celebram o fim do expediente e ruminar o próximo parágrafo, é sentir o anzol da linguagem continuamente a perfurar-lhe o estômago. Quando o fruto deste trabalho ganhar o mundo, o rigor na recepção prevalecerá.

O mesmo não acontece em cinema –que, para ser bem-feito, não exige menos que a boa literatura.

Adriana Komura
Espectadores de filmes costumam dar uma segunda chance ao diretor, enquanto leitores de livros são vingativos
Espectadores de filmes costumam dar uma segunda chance ao diretor, enquanto leitores de livros são vingativos

Bons filmes são tratados como ótimos, filmes médios como bons e porcarias tendem a virar pérolas.

No Brasil, a crítica cinematográfica majoritariamente exerce o papel que lhe cabe no jogo do mercado quando lida com filmes televisivos ou de cinema com vocação para bilheteria. Estes são resenhados com maturidade, enquanto os cineastas ditos "de invenção" vivem acolchoados por certa benevolência.

Embora o mais barato dos filmes seja infinitamente mais caro que um livro, errar em cinema é "work in progress", enquanto errar em literatura é fatal. Se um livro sai por uma editora grande e não banca seus custos (quando a edição atinge por volta de mil exemplares vendidos), a chance do mesmo autor de ver seu próximo romance nas livrarias diminui drasticamente.

Ter um filme no currículo, mesmo que de baixo orçamento, digo, algo em torno de R$ 1 milhão, visto por menos de mil pessoas, o equivalente a uma festa bombada, não diminui as chances do mesmo cineasta levar sua próxima película incentivada às telas.

Um escritor, para construir uma obra hoje, necessariamente terá mais qualidade que um cineasta - embora qualquer cineasta colecione mais prêmios que bons escritores (são centenas de festivais ao redor do mundo, é missão impossível sair da rodada de viagens sem pelo menos uma estatueta qualquer). A literatura brasileira tem mais tradição e maturidade que o cinema nacional, que, em boa parte de sua safra, revela ainda viver na adolescência do experimentalismo. Não se faz uma seleção de cem melhores filmes brasileiros à altura dos "Cem Melhores Contos Brasileiros". Os cineastas sabem disso, tanto é que boa parte dos filmes brasileiros são adaptações literárias.

Para o bem e para o mal, a literatura está inserida num jogo de mercado, enquanto a indústria do cinema brasileiro é uma mãe, cujos filhos gozam de maior reconhecimento que os escritores, em todos os aspectos, sobretudo no material. Numa cultura viciada em imagens, deve ser a literatura que está fora de lugar.


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