Folha de S. Paulo


Casal vive como figurante em novelas globais por 20 anos

Passados 22 anos da eleição de Fernando Collor de Mello, seu Nelson e dona Léa ainda se arrependem pelos dois votos confiados ao ex-presidente.

Meses antes da posse, seu Nelson vendeu as mais de 20 filiais de sua transportadora no interior de São Paulo. O dinheiro estava na conta à época do confisco. Ambos tinham 46 anos quando encontraram-se quebrados e sem perspectiva. Vendo o marido fenecer de depressão, Léa sugeriu que deixassem Campinas, onde viveram por oito anos. Um de seus dois filhos estudava no Rio de Janeiro. Mudaram-se para Copacabana.

Léa fazia supermercado quando foi abordada por uma olheira de figuração. Nunca ouvira aquela palavra antes. Durante 20 anos o casal viveu como figurante. O profissionalismo, a educação e a elegância tornaram ambos requisitados. Tiraram DRT (o registro que permite aos atores trabalhar profissionalmente), tiveram cenas com fala e por duas vezes foram o casal do ano na publicidade, atuando em mais de 300 comerciais.

Sob olhar atento, poderiam ser percebidos nos três horários das novelas da Globo. Ele como juiz, advogado ou empresário, ela de socialite.

Faziam, em média, R$ 3.500 por mês. Não foram poucas as noites em que Nelson voltou para casa depois de um dia de trabalho, espremeu-se em seu divã de 1,5 m x 0,8 m e sentiu-se menor que o próprio móvel. Na pirâmide de poder de um set, figurantes ocupam a base. Chegam primeiro e vão embora por último, comem após a produção, sem direito a repetir, recebem 60 dias depois do trabalho e escutam desaforos de todo tipo de besta com crachá. Atores como José de Abreu e Malvino Salvador já foram obrigados a se retratar por fazer piadas comparando-os a animais –o que é incomum. Não a piada, mas retratar-se por ela.

Já no primeiro dia de filmagem, o casal quis desistir. Continuou por falta de opção. Até se acostumar, segundo Nelson, "a viver de um jeito humilhante em um jardim muito belo". Mas foram seduzidos pelo lado artístico. Nelson recorda com emoção a madrugada em que foi gravar uma externa. Abriu um livro e sentou-se para esperar. O cenário foi montado, chegaram as câmeras e, muito depois, entrou o personagem Nerso da Capitinga, puxando uma vaca com coroa de papel.

A cena havia nascido diante dos seus olhos. No apartamento de três quartos, aos fundos da avenida Atlântica, a televisão nunca exibe novelas, só musicais e ópera. O único registro que o casal guarda das duas décadas de figuração é um pôster da campanha do Cebion, na cozinha. Nele, aparecem somente os dois, se olhando, sorrindo, saudáveis, na praia, alegremente surpreendidos pelas ondas.

É da praia que Nelson hoje tira seu sustento. Léa foi a primeira a parar com as novelas, há cinco anos. Nelson trabalhou até o começo deste ano, quando, cansado, adquiriu as luvas de uma barraca no Leme, segundo ele, "um ambiente democrático". Ao menos sob o Sol, todos ainda são iguais.


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